Folha de S. Paulo


EUA têm 1º caso federal de mutilação genital e debatem aumento de pena

A deputada estadual de Minnesota Mary Franson recebeu um recado de uma amiga no ano passado pedindo-lhe para redigir uma lei mais rígida contra a mutilação genital feminina.

O Estado já tinha proibido essa prática em 1994, por isso a deputada republicana temeu que uma nova lei parecesse "islamófoba", diante de seu público alvo.

Mas um caso a fez mudar de ideia.

Carl de Souza/AFP
This photo taken on May 11, 2017 in Nairobi shows surgical instruments used in the process of clitoral restorative surgery. US based NGO Clitoraid, has launched its first humanitarian mission in Kenya, offering clitoral restorative surgery to 40 victims of female genital mutilation (FGM). According to a 2013 UNICEF report, as many as a quarter of all Kenyan women are victims of FGM. FGM is a life-threatening procedure that involves the partial or total removal of a woman's external genitalia. It has been banned in Kenya since 2011 but it still takes place in some tribal areas which refuse to omit it from cultural and traditional practices. / AFP PHOTO / CARL DE SOUZA ORG XMIT: 3709
Instrumentos cirúrgicos usados em clínica que faz cirurgias restaurativas de mutilação genital

No mês passado, promotores federais acusaram três médicos de Michigan de operar três meninas de Minnesota. Os pais de uma delas –ostensivamente cúmplices no procedimento– perderam a custódia "por 27 horas", disse Franson, incrédula, aos legisladores no plenário da Câmara de Minnesota na semana passada.

Agora ela quer que o Estado, no norte dos EUA, aprove uma lei que levaria os infratores à prisão por até 20 anos, visando igualmente pais e médicos.

"Estamos dizendo que, se você ferir sua filha dessa maneira, você será responsabilizado", disse ela.

A mutilação genital feminina é um crime federal nos EUA há mais de duas décadas, acarretando uma sentença máxima de cinco anos de prisão. Mas os três médicos de Michigan são os primeiros acusados sob essa lei. O caso provocou uma enxurrada de novos projetos de lei em todo o país, com um número crescente de Estados agindo para aumentar as penas de prisão para os pais.

A questão tem sido um para-raios nos círculos políticos de direita há anos, com os ativistas contra os muçulmanos e a imigração ligando-a explicitamente ao islamismo. Na verdade, não há menção à mutilação genital feminina no Corão, e o procedimento é raro na maioria dos países muçulmanos.

Mas os advogados dos médicos acusados, que são muçulmanos, dizem que sua defesa no julgamento no mês que vem provavelmente invocará a liberdade religiosa, medida que com certeza dará ao caso ainda maior carga política.

Projetos de autoria de republicanos continuam pendentes nos Estados de Michigan, Minnesota, Texas e Maine, e ativistas dizem que Massachusetts também está avaliando uma ação legislativa.

Em Minnesota, que já é um dos Estados que proíbem a mutilação genital feminina, deputados estaduais votaram em 15 de maio por 124 a 4 pela ampliação das penas. A lei irá ao Senado estadual para consideração, mas provavelmente será assinada antes do outono.

A mutilação genital feminina (MGF), às vezes chamada de corte genital ou circuncisão feminina, refere-se à antiga prática ritual de cortar partes da genitália de uma menina, e às vezes costurar a abertura vaginal. Ela não tem benefícios para a saúde e pode resultar em sérias complicações, incluindo hemorragia e morte, a perda permanente do prazer sexual, dores durante a relação sexual e infecções crônicas.

A Organização Mundial de Saúde diz que mais de 200 milhões de mulheres e meninas que vivem em 30 países sofreram MGF. A maioria desses países fica na África.

James Akena /Reuters
Prisca Korein (L), a 62-year-old traditional surgeon, performs femalegenital mutilation on teenage girls from the Sebei tribe in Bukwadistrict, about 357 kms (214 miles) northeast of Kampala, December 15,2008. The ceremony was to initiate the teenage girls into womanhoodaccording to Sebei traditional rites. REUTERS/James Akena (UGANDA)TEMPLATE OUT
Cirurgiã que realiza mutilação genital em Uganda

A prática abrange um leque de grupos étnicos e religiosos, apesar de proibições nacionais em quase todos os lugares. Embora haja várias explicações para essa prática, especialistas dizem que ela é muitas vezes motivada por pressões sociais para controlar a sexualidade das jovens e garantir sua virgindade antes do casamento.

Alguns praticantes também acreditam que ela tenha um objetivo religioso, embora a prática não se origine na doutrina islâmica.

Alguns religiosos muçulmanos endossaram a prática, mas diversos líderes do islã a condenaram. O grande mufti do Egito, uma importante autoridade sunita, emitiu uma fatwa contra ela em 2007, e o grande aiatolá Ali Sistani, líder religioso dos xiitas, a condenou em 2009. Cristãos, animistas e judeus também já participaram de MGF.

Os três médicos de Michigan e as garotas que eles cortaram, segundo os investigadores, são da pequena seita dawoodi bohra do islamismo xiita, em que essa prática é comum e cujos religiosos a endossariam. O julgamento deles está marcado para o mês que vem.

Não há dados confiáveis sobre o número de mulheres afetadas por mutilação genital nos EUA, segundo os autores de um relatório de 2016 do Escritório de Contabilidade do Governo (GAO na sigla em inglês).

Mas os Centros para Controle e Prevenção de Doenças (CDC) estimam que cerca de 513 mil mulheres e meninas nos EUA sofreram o procedimento ou correm o risco de sofrê-lo no futuro, com base nas populações imigrantes de países onde a prática é predominante, como Somália, Etiópia e Sudão.

A lei do Maine tornaria os pais que consentirem com a mutilação passíveis de até dez anos de prisão.

Neste mês, o Senado estadual do Texas aprovou por unanimidade uma lei semelhante que permite que o Estado processe pessoas "que transportarem ou permitirem o transporte de uma pessoa para o fim de MGF", disse a autora do projeto, a senadora estadual republicana Jane Nelson.

Em Michigan, onde o Senado aprovou por unanimidade um pacote de leis contra a mutilação feminina em 17 de maio, os infratores e seus cúmplices enfrentarão até 15 anos de prisão.

"Queremos mandar a mensagem de que Michigan não é o lugar para levar sua filha para essa prática maligna, horrível, demoníaca", disse o senador republicano Rick Jones a seus colegas durante uma recente audiência sobre a medida.

A nova onda de atenção agradou ao grupo de ativistas americanos que passaram anos em campanha para pôr fim a uma prática que, segundo eles, é mal compreendida e em geral ignorada pelo público, a Justiça e as autoridades americanas.

"Quando coisas desse tipo acontecem, as pessoas só querem conseguir que todos os Estados a penalizem. Mas há uma imagem maior em que não estamos nos concentrando", disse Jaha Dukureh, fundadora do grupo de ativistas contra a MGF Safe Hands for Girls, sediado em Atlanta (Geórgia).

Dukureh, que sofreu o procedimento quando era criança em Gâmbia, disse que prefere ver educação e atividades destinadas a evitar essa prática, e não somente punição.

Por exemplo, muitos ativistas, médicos e legisladores disseram que querem um melhor treinamento dos profissionais de medicina para que possam tratar a questão com mulheres que sofreram mutilação e que estão grávidas de meninas.

E querem espalhar a consciência disso em escolas e comunidades vulneráveis, pedindo o apoio de moradores e líderes religiosos para condená-la.

Ativistas somalis-americanos vêm pressionando os legisladores por verbas para evitar a prática por meio de educação e atividades, disse a deputada de Minnesota Susan Allen, do Partido Democrático-Agricultores-Trabalhista.

"Eles não têm recursos", disse ela.

Os EUA proibiram a mutilação genital feminina em 1997, e em 2003 proibiram o transporte de uma menor para o exterior para sofrer o procedimento. Mas houve apenas outras duas investigações do FBI sobre essa prática nas últimas duas décadas. Em ambos os casos, o FBI não conseguiu encontrar vítimas, e só um deles, na Califórnia, levou a denúncia, segundo o relatório do GAO.

Nesse caso, o dono de um estúdio de piercing e modificação do corpo e sua namorada foram condenados em 2005 a cinco e dois anos de prisão, respectivamente, por conspirar para cometer mutilação genital feminina e distribuir pornografia infantil.

Especialistas dizem que uma cultura da vergonha e sigilo –ou talvez mesmo a ignorância de ter sofrido mutilação em idade muito jovem para lembrar-se– faz que muitas pessoas não falem sobre a MGF nos EUA.

Deborah Thorp, uma obstetra-ginecologista em Minneapolis, disse que atende pelo menos uma paciente por dia que sofreu mutilação, muitas delas refugiadas mais velhas da Somália, onde o índice de prevalência é de 98%.

Mas ela disse que duvida que a prática seja comum entre as crianças somalis-americanas nascidas nos EUA.

"Atendo muitas mães furiosas porque isso foi feito nelas, e acho difícil pensar que elas possam ter algo a ver com isso hoje", afirmou.

Alguns ativistas e legisladores democratas afirmaram –em vez de mostrar dados concretos sobre a prevalência da MGF– que o racismo, a islamofobia e os sentimentos contra imigrantes ajudaram a alimentar o entusiasmo pelas novas políticas.

Blogs e sites de notícias de extrema-direita há muito perpetuam o mito de que a mutilação genital feminina é uma prática islâmica comum entre imigrantes que são fundamentalmente contrários à sociedade americana.

A mutilação feminina e as mortes de honra "não existiriam nos EUA sem a imigração em massa que traz seus praticantes para as comunidades americanas", escreveu em março a repórter Katie McHugh no site Breitbart. Stephen Miller, um assessor graduado do presidente Donald Trump, manifestou o mesmo sentimento.

Em Minnesota na semana passada, alguns legisladores dissidentes temiam que aplicar punições "draconianas" por um crime mal compreendido poderia agravá-lo.

A lei de Minnesota tornaria mais fácil e mais provável que o Estado assumisse a custódia de uma criança cujo progenitor é suspeito de envolvimento em mutilação genital feminina. Para os suspeitos que ainda não são cidadãos americanos, o crime provavelmente significaria a deportação.

"Quando você começa a tirar crianças de suas famílias, aumentando as penas para as famílias, é provável que isso possa fazê-las não denunciar a violência. Elas podem não cooperar com a polícia", disse Allen.

Colaborou ALICE CRITES


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