Folha de S. Paulo


Jornalista que denunciou assassinato de gays na Tchetchênia relata ameaças

Kirill Kudryavtsev/AFP
Ativistas dos direitos LGBT realizam protesto contra o governo do presidente Vladimir Putin em Moscou
Ativistas dos direitos LGBT realizam protesto contra o governo do presidente Vladimir Putin em Moscou

RESUMO Elena Milashina assumiu a cobertura sobre a Tchetchênia em 2006, após o assassinato de sua colega jornalista Anna Politkovskaya. Em 1º de abril deste ano, publicou uma reportagem no jornal russo "Novaya Gazeta" que denunciava o assassinato de homossexuais acobertados pelo governo. Ela e seus colegas passaram a receber ameaças de morte, e Elena precisou deixar o país rumo a um local desconhecido

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Escrevo sobre questões da Tchetchênia há muitos anos. As autoridades de lá não gostam do meu trabalho, eu sei, querem manter a região completamente fechada, mas não esperava que desta vez acontecesse algo assim. A atenção que minha reportagem sobre a tortura e o assassinato de gays recebeu realmente deixou o governo de Ramzan Kadyrov furioso.

Não é a primeira vez que isso acontece. Mas agora recebemos alertas de que era melhor eu sair do país. Continuo trabalhando, mas fora da Rússia.

Comecei a cobrir assuntos do Cáucaso em 2004, escrevendo sobre o ataque terrorista na escola em Beslan [na Ossétia do Norte, sudoeste da Rússia, que deixou mais de 330 mortos, entre eles 186 crianças]. Depois, fiquei rodando por ali, fazendo amigos e acumulando fontes.

Naquela época, Anna Politkovskaya escrevia sobre a Tchetchênia para o "Novaya Gazeta". Era uma de nossas jornalistas mais brilhantes. Quando foi assassinada, em 2006, meus chefes acharam que eu era a pessoa mais bem preparada para continuar seu trabalho.

Em 2009, minha grande amiga Natalya Estemirova também foi morta. Nós, do "Novaya Gazeta", aprendemos a lição de que jornalistas podem ser assassinados e temos de tomar conta uns dos outros porque o governo não vai nos ajudar.

Mas nunca aconteceu nada comigo. Minha vida na Rússia era normal. Ia para o trabalho e não ficava com medo de voltar para meu apartamento, mesmo tarde da noite. A diferença é que dessa vez 15 mil pessoas se reuniram na principal mesquita de Grozni e anunciaram uma "jihad" [guerra santa] contra os jornalistas do "Novaya Gazeta".

Não imagino que um fanático irá nos matar. Mas recebemos isso como um sinal de que as autoridades tchechenas podem encobrir suas ações apontando esses religiosos como culpados. Estão procurando uma desculpa para matar jornalistas.

O Kremlin disse que os jornalistas que cobrem a Tchetchênia, especialmente os do "Novaya Gazeta", não deviam temer, mas não sabemos o quanto Vladimir Putin tem Kadyrov sob controle.

Pela primeira vez, vi que meu caso poderia terminar como os das minhas colegas. Isso nos motivou a tomar algumas medidas de segurança. Em Moscou, eu usava um motorista particular às vezes. Outras vezes, não voltei para casa. Depois, decidimos que deveria sair do país.

A última vez que estive na Tchetchênia foi em fevereiro. Eu ia a cada mês ou dois, mais para encontrar amigos, mesmo sabendo que podia ser um pouco perigoso para eles.

Mas os encontros com as fontes só acontecem fora de lá. Não posso mais fazer como antes, sair batendo de porta em porta, conversando com as pessoas, entrevistar policiais, autoridades. Isso me deixa maluca, mas ainda consigo fazer meu trabalho, mesmo de longe.

Morei na Tchetchênia em 2014, quando fui declarada inimiga pública. O governo fez filmes para a TV dizendo que era perigoso falar comigo. Matar na Tchetchênia é algo comum. Muitas vezes, pessoas me ligavam para checar se uma pessoa estava viva ou para pedir a confirmação de uma morte.

Foi assim que a reportagem sobre a perseguição aos gays começou. Em março, recebi a informação de que uma personalidade da TV havia sido presa e torturada até a morte só por ser homossexual. Iniciei a investigação e obtive a confirmação de que havia mais de 160 presos e 50 mortos.

Os homossexuais tchetchenos sofrem. Muitos casam, têm filhos, acham que são doentes, sujos, mas ao mesmo tempo não conseguem sublimar seu desejo. Para a sociedade tchetchena, ter um gay na família é uma vergonha.

A publicação da reportagem foi complicada. Não podíamos citar as fontes ou colocaríamos suas vidas em risco. Meu editor pediu que eu confirmasse as informações com o maior número possível de pessoas. Consegui falar com mais de 40, inclusive do governo e do serviço secreto. Não tínhamos dúvidas de que gays estavam sendo presos arbitrariamente, torturados e mortos.

Essa estratégia se mostrou acertada. Protegemos as fontes, e o governo local não tem ideia do que nós sabemos. Se a Rússia iniciar uma investigação de verdade, temos muitas informações.

Fizemos uma parceria com a organização Russia LGBT Network e duas semanas depois da publicação, mais de 70 pessoas já haviam escrito para eles. Posso dizer que, pela primeira vez, meu trabalho salvou mais de cem vidas. É o melhor resultado que já obtive como jornalista.

O governo russo, que primeiro negou, agora já abriu uma pré-investigação. Não é criminal ainda, mas, como diria o [astronauta] Neil Armstrong, é um "pequeno passo para o homem, mas um grande salto para a humanidade".

Hoje vejo que faço meu trabalho com um propósito. Aceitei continuar o trabalho da Anna como um princípio: mostrar que não adianta quantos jornalistas você mate, sempre haverá mais um.


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