Folha de S. Paulo


Opinião

Constituição virou dor de cabeça para Maduro

Para tentar fugir da crise política, o governo do presidente Nicolás Maduro decidiu convocar uma Assembleia Constituinte com suas próprias condições.

A questão é que esta convocação quebra a tradição venezuelana, como a de todos os países democráticos, de que as eleições sejam universais (todos participam delas sem vieses nem segmentações), diretas e secretas.

Carlos Becerra/AFP
O presidente venezuelano, Nicolás Maduro, e sua mulher, Cilia Flores, em comício do 1º de Maio
Presidente venezuelano, Nicolás Maduro, e sua mulher, Cilia Flores, em comício do 1º de Maio

É óbvio que Maduro não poderia ganhar uma eleição desse tipo. Então, o governo faz uma convocação Frankenstein em que será eleito um número descomunal de 500 representantes, parte em eleições convencionais e outra selecionada pelos setores que o chavismo decida.

Este processo será, claramente, enviesado e tutelado, garantindo que o governo possa ter a maioria para controlar a Assembleia. Com isso tenta matar vários coelhos com uma cajadada só. Primeiro, canalizando a energia para uma eleição que, na verdade, é uma armadilha que esconde uma bomba.

Segundo, despejando automaticamente os poderes constituídos, que estarão subordinados à Assembleia Constituinte assim que ela for convocada: um mecanismo para anular a Assembleia Nacional (dominada pela oposição) e também, se o governo quiser, a Procuradora-Geral da República, hoje rebelde.

Terceiro e mais importante: redigindo uma nova Constituição que substitua a de 1999 que, embora tenha sido feita e promovida por Hugo Chávez, é democrática e liberal.

A lei máxima virou uma dor de cabeça para que a Revolução Bolivariana continue no poder sem apoio popular e absolutamente incapaz de ganhar qualquer eleição medianamente transparente.

Nessa nova Constituição se buscará, sem sombra de dúvidas, abrigar processos enviesados de seleção que fulminem definitivamente a democracia eleitoral e autorizem a revolução a ficar no poder, ainda que a maioria a rejeite e deseje mudança.

Quarto, enquanto ocorre a Constituinte estão suspensas as eleições regionais e presidenciais de 2017 e 2018, fazendo com que o governo se afaste de seu maior perigo.

Finalmente o processo natural de uma Constituinte deveria incluir um referendo para aprovar o documento final, com condições convencionais de universalidade eleitoral, processo em que o governo certamente perderia.

Alguns analistas acreditam que, ainda assim, Maduro teria ganhado tempo, fugido das eleições e organizado seu grupo, o que é suficientemente atrativo. Acho que vai além.

O governo aproveitará um vazio constitucional em que deixa implícita a obrigação de que a nova Constituição seja validada pelo povo.

O mais provável é que a concluam só com o aval da Assembleia, formada de maneira enviesada sob o conceito de "democracia protagonista", uma desculpa para fulminar e controlar a democracia real. Em poucas palavras, não farão referendo porque provavelmente vão perder.

Longe de resgatar o equilíbrio, a decisão acelera a crise entre governo e oposição. Impede qualquer acordo ou diálogo das duas partes e obriga os opositores a reforçar a luta nas ruas. É impensável que eles participem desta convocação circense.

Apesar das múltiplas divisões entre seus rivais, o governo consegue com isso unificá-los em critérios, reativar e dar oxigênio à sua luta pelo resgate da democracia.

Também consolida a rejeição internacional ao que é, sob todas as luzes, uma violação dos direitos humanos e democráticos e uma tentativa de impor uma autocracia coberta de manipulações legais absolutamente intragáveis para qualquer democrata na Venezuela e no mundo.

LUIS VICENTE LEÓN é economista e presidente do instituto Datanalisis


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