Folha de S. Paulo


Caos socioeconômico na Rússia explica surgimento do jogo Baleia Azul

Uma espécie de "jogo do suicídio" que surgiu na Rússia e está se espalhando entre os adolescentes do planeta provoca as mesmas questões urgentes em toda parte, o que inclui o Brasil. Quem é responsável? E como impedir que ele avance?

As redes sociais e o Legislativo da Rússia decidiram agir para eliminar os chamados "grupos de morte", mas pode bem ser que estejam lutando contra uma lenda urbana. No entanto, a ameaça é evidente e está bem estabelecida: os índices tragicamente elevados de suicídios encontrados em países que enfrentam problemas desde a queda da União Soviética resultam de males sociais muito mais amplos.

Luli Penna/Editoria de Arte/Folhapress
Ilustração de Luli Penna para a coluna do Marcelo Coelho do dia 12 de abril

O jogo que vem causando preocupações aos pais e às autoridades se chama Baleia Azul, no Brasil –uma tradução direta do nome original russo, Siniy Kit.

O nome aparentemente vem de uma canção da banda de rock russa Lumen. Os versos de abertura são "por que gritar / quando ninguém ouve / o que estamos dizendo?", e a letra fala de "uma grande baleia azul" que "não consegue romper a rede".

Ao postar mensagens com determinados hashtags em redes sociais ou ao aderir a certos grupos, os adolescentes –em geral com idades dos 10 aos 14 anos– são selecionados por "curadores" que, depois de averiguar as informações do potencial participante, estabelecem listas com até 50 tarefas diárias para cada um deles, e essas tarefas culminam na missão mais importante do jogo: o suicídio.

As tarefas envolvem assumir riscos, como por exemplo que o participante se corte. Nos dez dias finais do jogo, o participante precisa acordar bem cedo pela manhã, ouvir música e pensar na morte. Os que se assustam e decidem sair do jogo recebem ameaças, em muitos casos a de que seus pais serão assassinados.

O público russo descobriu o jogo e suas variantes em maio de 2016, inicialmente, quando Galina Mursaliyeva, do "Novaya Gazeta", um jornal conhecido por sua oposição ao Kremlin, descreveu a cultura daquilo que descreveu como "grupos de morte" ao relatar a experiência de uma mãe cuja filha de 12 anos havia se suicidado.

Depois da tragédia, a mãe investigou as atividades de sua filha online, e se sentiu compelida a revelar o resultado da investigação a fim de evitar novas tragédias. A história causou sensação, e chegou a gerar apelos pela restrição do acesso de adolescentes à Internet.

Em novembro, Filipp Budeykin, 21, acusado de ser um dos primeiros "curadores", foi detido por incitação ao suicídio. Os apartamentos de outros dos administradores do "jogo da morte" foram alvo de revistas policiais. Budeykin, que aparentemente sofre de distúrbio bipolar e teve uma infância infeliz, marcado por sofrimento e abusos, está aguardando julgamento.

Este ano, a discussão sobre os "grupos de morte" ressurgiu. Informações sobre adolescentes participando do jogo emergiram na Estônia, Cazaquistão, Ucrânia e outros países pós-soviéticos.

Irina Yarovaya, vice-presidente do Legislativo russo e uma das integrantes mais linha dura do parlamento, disse em fevereiro que o número de suicídios de adolescentes na Rússia havia subido de 461 em 2015 a 720 em 2016.

"Uma guerra está sendo travada contra as crianças", ela declarou, sem informar quem a estava travando. "Essa é uma verdadeira atividade criminosa, organizada, propositada e com consequências".

Yarovaya apresentou um projeto de lei que torna crime a administração de "grupos de morte" e participação em jogos como o Baleia Azul, e propôs sentença de seis anos de prisão para os envolvidos. Na semana passada, o Legislativo aprovou a proposta em primeira votação.

O Vkontakte e o Instagram, dois dos serviços online mais visitados pelos adolescentes russos, também estão tentando combater a ameaça, por meio da remoção de posts que contenham hashtags associados ao Baleia Azul. O Instagram também está enviando mensagens aos responsáveis pelos posts, sugerindo que busquem terapia e oferecendo ajuda.

O ponto fraco da associação entre suicídios de adolescentes e as ações de grupos em redes sociais é, evidentemente, a inexistência de provas. Um adolescente que esteja contemplando o suicídio sempre buscará contato com pessoas que pensem como ele, e as redes sociais são simplesmente o lugar mais fácil para essa busca.

Minha filha adotiva de 14 anos sabe tudo sobre o Baleia Azul, e fala do jogo em tom calmo e zombeteiro –mas menciona casualmente que tem amigos que, embora não se disponham a pular pela janela de um edifício alto, gostam de se cortar, porque isso atrai atenção e faz com que se sintam especiais.

Como o jogo se difundiu amplamente, há adolescentes russos que buscam os "curadores" e os zoam online.

Em um diálogo hilariante, o curador pede a uma menina que "corte uma baleia". Em lugar disso, ela corta um gato de papel de uma história em quadrinhos no jornal. As palavras russas para gato e baleia –kot e kit– são parecidas.

Ao perceber que a menina não está levando a sério o jogo de suicídio, o administrador fica zangado e ameaça enviar pessoas para agredi-la. Ela responde: "Vou descer para esperar na rua –o elevador não está funcionando e elas podem não ter energia para me matar se tiverem que subir oito andares de escada". Nenhum agressor aparece, é claro.

É possível, evidentemente, que o jogo e os "grupos de morte" tenham causado elevação no número de suicídios. As pessoas, especialmente os adolescentes, tendem a se matar em "aglomerados espaço-temporais", em função do comportamento imitativo.

Mas mesmo assim, de acordo com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) o indício de suicídio entre os adolescentes da Rússia é superior à média da organização há muito tempo. Atualmente, ele só fica atrás dos números da Nova Zelândia, onde jovens das comunidades indígenas carentes elevam o número de suicidas.

Nenhuma organização internacional acompanha especificamente os números sobre suicídio de crianças de entre 10 e 15 anos, a audiência alvo do Baleia Azul. Mas é seguro presumir que a Rússia também esteja entre os líderes mundiais, nesse cômputo.

Pesquisadores atribuíram a prevalência do suicídio adolescente na Rússia à disfunção generalizada na vida familiar –a Rússia tem um dos índices de divórcio mais elevados do planeta– e à disponibilidade fácil e aceitação social do uso de álcool.

Também há pressões adicionais, como a de viver em um sistema corrupto e semicapitalista onde não existe caminho seguro para o sucesso, para as crianças de famílias desprovidas de conexões políticas e profissionais.

É especialmente difícil divisar um futuro se você está crescendo em um bloco de apartamentos populares encardido, na periferia de uma cidade industrial, com pais bêbados, belicosos ou ausentes e uma escola que não oferece qualquer alívio. É frequentemente essa a história que precede o suicídio de um adolescente russo.

Existem indicações de que os jovens russos estão buscando ativamente maneiras de extravasar suas frustrações. Estudantes secundaristas e universitários foram a principal força por trás dos recentes protestos contra a corrupção em todo o país. Mas nem todo mundo se interessa por atividades políticas, e na Rússia elas podem terminar tão mal quanto um jogo de suicídio.

O governo russo vem aos poucos adotando leis mais duras contra conteúdo de Internet relacionado a suicídios, e chega a fechar sites por uma simples menção a suicídio. A justiça se tornará ainda mais rigorosa quanto os "grupos de morte" forem caracterizados como atividade criminosa.

Mas o índice de suicídio de adolescentes não vai cair a menos que suas causas sejam enfrentadas, e não apenas seus sintomas.

O índice de suicídios na Rússia é menor hoje do que nos anos 90, quando a maioria da população do país estava sofrendo com os sérios problemas da economia. Para reduzi-lo ainda mais será necessário criar incentivos para que as famílias não se dissolvam, combater as epidemias descontroladas do alcoolismo e das drogas, e apresentar aos jovens uma visão de futuro mais convincente.

O governo do presidente Vladimir Putin, no entanto, parece mais preocupado em promover uma alta no índice de natalidade, algo sobre o que o presidente jamais perde a chance de se vangloriar.

Enquanto isso, o Baleia Azul, com sua exploração da autopiedade e do apego dos adolescentes a fazer drama, continuará avançando pelo planeta. O jogo não precisa do feio cenário da Rússia para prosperar: a miséria adolescente não tem fronteiras.

Tradução de PAULO MIGLIACCI

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Sinais de Alerta

  • Falar sobre querer morrer
  • Procurar formas de se matar
  • Falar sobre estar sem esperança ou sobre não ter propósito
  • Falar sobre estar se sentindo preso ou sob dor insuportável
  • Falar sobre ser um peso para os outros
  • Aumento no uso de do álcool e drogas
  • Agir de modo ansioso, agitado ou irresponsável
  • Dormir muito ou pouco
  • Se sentir isolado
  • Demonstrar raiva ou falar sobre vingança
  • Ter alterações de humor extremas
  • Quanto mais sinais, maior pode ser o risco da pessoa

O que fazer

  • Não deixar a pessoa sozinha
  • Tirar de perto armas de fogo, álcool, drogas ou objetos cortantes
  • Ligar para canais de ajuda
  • Levar a pessoa para uma assistência especializada

Alguns pontos de alerta para depressão em adolescentes:

  • Mudanças marcantes na personalidade ou nos hábitos
  • Piora do desempenho na escola, no trabalho e em outras atividades rotineiras
  • Afastamento da família e de amigos
  • Perda de interesse em atividades de que gostava
  • Descuido com a aparência
  • Perda ou ganho inusitado de peso
  • Comentários autodepreciativos persistentes
  • Pessimismo em relação ao futuro, desesperança
  • Disforia marcante (combinação de tristeza, irritabilidade e acessos de raiva)
  • Comentários sobre morte, sobre pessoas falecidas e interesse por essa temática
  • Doação de pertences que valorizava

Cerca de 90% das pessoas que morrem de suicídio possuíam transtornos mentais. Elas poderiam ser tratadas e acompanhadas

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Telefones e sites de ajuda:

Centro de Valorização da Vida (CVV): 141
Também é possível entrar em contato e receber apoio emocional do CVV via internet, a partir de email, chat e Skype 24 horas por dia

Fontes: American Foundation for Suicide Prevention; Centro de Valorização da Vida; "Comportamento suicida: vamos conversar sobre isso?", de Neury José Botega, membro-fundador da Associação Brasileira de Estudos e Prevenção do Suicídio; "Preventing Suicide: A Global Imperative", da Organização Mundial da Saúde


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