Folha de S. Paulo


Impedidas de estudar, crianças afegãs falam de seus maiores medos

No primeiro dia do novo ano letivo do Afeganistão, na quinta-feira (23), a ausência de 3,7 milhões de meninos e meninas era esperada nas salas de aula, por conta da violência intensificada, do deslocamento de famílias e da pobreza.

O total de alunos ausentes –equivalente a um terço das crianças afegãs em idade escolar– deve crescer este ano, com a intensificação da violência entre as forças afegãs e os combatentes do Taleban, e a expulsão de refugiados afegãos pelo Paquistão, de acordo com a organização assistencial Save the Children.

Conversamos com cinco dessas crianças. Abaixo, as histórias delas, em suas palavras, traduzidas e editadas.

*

"Eu adorava ir à escola, mas não temos dinheiro suficiente"

Lina, 12, é da província de Kapisa, no nordeste do Afeganistão, mas os membros de sua família foram forçados a deixar a região por conta dos combates, sete anos atrás. Ela agora vive em um campo de refugiados em Cabul. Lina foi à escola por três anos, mas teve de abandonar os estudos.

"Eu adorava ir à escola, mas não tinha dinheiro para comprar cadernos e outras coisas. Nossos parentes estão zangados conosco por termos deixado a escola, mas sem cadernos não era possível estudar e fazer o dever de casa.

Fahim Abe/The New York Times
Lina, 12, cuja família teve de fugir do nordeste do Afeganistão e hoje vive em um campo de refugiados
Lina, 12, cuja família teve de fugir do nordeste do Afeganistão e hoje vive em um campo de refugiados

Se eu não for à escola, não serei nada no futuro; se for à escola, vou ser médica. Quero ser médica.

Aqui, nós vivemos em barracas; minha família tem duas delas; durmo com cinco dos meus irmãos e irmãs em uma delas e meu pai, mãe e duas irmãs pequenas dormem na outra.

No café da manhã, comemos o que sobrou do jantar, se sobrou alguma coisa. Se não, comemos pão e tomamos chá. Depois do café, trago água do poço, que fica a uma hora de distância do campo. Trazer água potável para a família é minha responsabilidade, e eu a carrego em um carrinho, em pequenos baldes, duas ou três vezes por dia. Também recolho pedacinhos de plástico e madeira, que queimamos para aquecer nossa casa."

*

"Se você vai à escola, terá um bom futuro"

Zahid, 8, é de Surkh Rod, um distrito na província de Nangarhar, no leste do país. Ele e seus quatro irmãos e irmãs ajudam o pai a recolher ferro velho em Jalalabad, uma cidade próxima.

"Todos os membros de minha família dormem em um quarto que alugamos por US$ 25 ao mês. Depois de acordar, lavo o rosto, faço o desjejum - chá e pão - e depois pego o meu saco e vou para o mercado.

Durante o dia, recolho pedaços de metal e madeira, e papéis. Para o almoço, espero diante da padaria - o padeiro ou um de seus funcionários me dá um pão, que divido com meu amigo ou meu primo.

Vendemos as coisas que recolhemos durante o dia por 20 centavos de dólar, e trago o dinheiro para casa para comprarmos chá, açúcar ou alguma outra coisa com ele. O máximo que ganho, em um dia inteiro de trabalho, são 50 centavos de dólar.

Não vou à escola porque não temos dinheiro para pagar as despesas. Os 20 centavos de dólar que ganho são para pagar pelo chá e pão.

Meus parentes e amigos estão indo à escola, e quando os vejo eu gostaria de ir à escola e estudar, também. Se você vai à escola, terá um bom futuro. Se não vai, não terá."

*

"Se meu pai ainda fosse vivo, eu não passaria o dia no mercado"

Raqibullah, 12, é de uma aldeia nas cercanias de Tirin Kot, uma cidade na província de Oruzgan, no sul do Afeganistão. Seu pai foi morto 18 meses atrás pela explosão de uma bomba posicionada à beira de uma estrada. Raqibullah se mudou para Tirin Kot depois disso.

"Quando estava na aldeia, eu ia à escola, mas agora não existem mais escolas por lá. Estudei só até a quarta série, mas ainda sei ler e escrever.

Na cidade, tenho um carrinho para vender doces, e alimento meus irmãos com o dinheiro que ganho. Tenho três irmãos e três irmãs e todos moramos juntos. Meu irmão mais velho tem 14 anos, e a criança mais nova da minha família é minha irmã de quatro anos. Meu irmão mais velho trabalha comigo.

Se meu pai ainda fosse vivo, eu não passaria o dia vendendo coisas no mercado.

Meus primos ainda moram na aldeia onde não existe escola. Mas meus vizinhos aqui... eles vão a escolas particulares e do governo. Quando vejo os meninos indo à escola, sinto que eu também deveria ir. Mas tenho de ganhar dinheiro para alimentar minha família e pagar aluguel."

*

"Meus dois irmãos ficam sozinhos"

Bakhti, 13, vem de Mazar-i-Sharif, uma cidade no norte do Afeganistão. A mãe dela morreu de hepatite B três anos atrás. Seu pai, que vive no Irã como trabalhador informal, deixou a menina e seus irmãos mais novos com um tio em Cabul.

"Acordo às seis da manhã. Depois do café, cuido da casa –limpo, varro os aposentos e a calçada, lavo a louça. Se alguém está tecendo um tapete, ajudou a tecer.

Zahra Nader/The New York Times
Bakhti, 13, que vive em Cabul e cuja mãe morreu de hepatite há três anos
Bakhti, 13, que vive em Cabul e cuja mãe morreu de hepatite há três anos

Recebo cerca de 80 centavos de dólar como gorjeta por tapete que eu ajude a fazer. O resto do dinheiro da venda dos tapetes é usado para cobrir as despesas da casa. Da última vez, com os 80 centavos, comprei um pente para mim e meias para meus irmãos.

Quando morava em Mazar, estudei até a quarta série. Quando vim para Cabul, fui à escola por três meses mas depois parei. As aulas aqui não são como em Mazar. Os alunos não se comportam bem. São muito violentos. Eles me chamavam de "menina estranha".

Também parei de ir à escola porque meus dois irmãos ficam sozinhos. Tenho medo de que eles se percam. Tenho de ficar em casa e cuidar deles. Se minha mãe ainda estivesse conosco, eu poderia estudar. Mas agora não posso.

Meus primos vão à escola. As crianças que vão à escola parecem ótimas. Também quero ir à escola, mas isso não vai acontecer."

*

"Fico feliz quando anoitece"

Imamuddin, 15, é do distrito de Charchino, na província de Oruzgan. Depois que o distrito, hoje controlado pelo Taleban, passou a ser local de intensos combates, o pai dele transferiu metade da família para Tirin Kot.

"Estudei até a quinta série em nosso distrito, mas as escolas fecharam no ano passado por causa dos combates. Havia combates todos os dias, e eu não conseguia nem sair de casa.

Minha mãe e cinco irmãs ainda vivem no distrito; estamos tentando trazê-las para cá o mais rápido que pudermos. Vivemos em uma casa alugada, que tem três cômodos, e pagamos cerca de US$ 60 por mês de aluguel. Meu pai, dois irmãos e eu dividimos um quarto. É inverno, e manter um quarto aquecido requer muita lenha; nós mal conseguimos manter um cômodo aquecido.

A vida é difícil para mim aqui, porque não faço nada. Vivo entediado. Mas fico feliz quando anoitece e posso ir dormir.

O que eu quero de verdade é me tornar médico e servir as pessoas. Peço ao meu pai para me colocar em um curso de inglês em Tirin Kot, mas ele não tem como pagar a mensalidade. Estudo com meus velhos livros de escola, e já completei cada um deles diversas vezes.

Posso começar a trabalhar, ou me mudar para outra província onde seja possível viver melhor. Fico preocupado com meu futuro e minha educação. No distrito, a vida era boa - vivíamos bem, tínhamos terras, um pomar e escolas e amigos de escola. Mas aqui não conhecemos ninguém. A guerra tirou tudo de nós."

Tradução de PAULO MIGLIACCI


Endereço da página: