Folha de S. Paulo


Impressão à moda antiga mantém escritos budistas vivos no Tibete

Gilles Sabrie/The New York Times
Tibetanos analisam impressos com blocos de madeira, técnica usada há mais de 300 anos na região
Tibetanos analisam impressos com blocos de madeira, técnica usada há mais de 300 anos na região

Cerca de 12 homens tibetanos usando aventais estavam sentados em duplas em cadeiras baixas, de frente uns para os outros. Cada dupla se debruçava sobre um bloco retangular fino de madeira e trabalhava à luz do sol que entrava pela janela do segundo andar, que dava para um pátio.

Suas mãos se mexiam com agilidade. Eles repetiam os mesmos movimentos constantemente, várias vezes por minuto: um homem passava tinta vermelha ou preta sobre o bloco de madeira, no qual estavam entalhadas palavras e imagens religiosas tibetanas.

Seu parceiro colocava uma folha fina de papel branco sobre o bloco e, abaixando-se mais ainda, passava um rolo sobre a folha. Segundos mais tarde, tirava a folha rapidamente e a colocava de lado para secar.

Esse agachamento era um ato de prostração diante de Buda, explicou a tibetana Pema Chujen, que conduzia um grupo de chineses da etnia han em visita ao mosteiro.

Eu estava atrás do grupo de visitantes. Tinha chegado ao mosteiro durante uma viagem de carro de duas semanas por esta parte do Tibete.

"Eles fazem isso todos os dias", disse Pema. "É a fé que carregam em seus corações. É claro que é bom fazer oferendas a Buda gastando muito dinheiro, mas fazer oferendas usando o próprio corpo, boca e mente demonstra mais devoção."

Gilles Sabrie/The New York Times
Um dos trabalhadores do Derge Parkhang, o mosteiro da impressão tibetano, pinta moldes para pintura
Um dos trabalhadores do Derge Parkhang, o mosteiro da impressão tibetano, pinta moldes para pintura

Era uma tarde como outra qualquer em uma das instituições mais respeitadas do mundo tibetano, o Derge Parkhang, ou mosteiro de impressão, no coração montanhoso da região de Kham.

Nos mapas chineses, o mosteiro aparece no extremo oeste da província de Sichuan, do outro lado do Cho La, um despenhadeiro vertiginoso de 5.000 metros de altitude.

Situado na cidade de Derge, o prelo data de 1729 e atrai peregrinos de todo o planalto tibetano para o mosteiro de três andares, com paredes vermelhas e teto adornado com ícones budistas dourados.

O prelo do mosteiro é a encarnação de uma tradição reverenciada e é um local onde o idioma tibetano está sendo preservado, apesar da falta de apoio governamental à educação em língua tibetana na região.

O mosteiro possui mais de 320 mil blocos de impressão de madeira que têm em média mais de 260 anos de idade cada um, disse Pema, voluntária que cuida da limpeza dos objetos do mosteiro e atua como guia de visitantes.

O mosteiro também abriga coleções de sutras, incluindo 830 textos clássicos e cópias de mais de 70% dos manuscritos da antiguidade tibetana, disse Pema. O fundador do mosteiro, Chokyi Tenpa Tsering, abraçava obras de toda a gama de escolas budistas tibetanas.

"Ele era muito aberto e tolerante, como o oceano que recebe água de todos os rios", disse Pema.

Gilles Sabrie/The New York Times
Escritos budistas são colocados para secar ao lado de prateleiras cheias de blocos de pintura
Escritos budistas são colocados para secar ao lado de prateleiras cheias de blocos de pintura

RENOVAÇÃO

Além de tentar preservar os blocos antigos, desde a década de 1980 a gráfica vem produzindo blocos novos. A expectativa, disse Pema, é que dentro de dez anos ela possua 400 mil blocos.

Os blocos de impressão são feitos de madeira de bétula vermelha, e sua confecção envolve 13 etapas. Em uma das primeiras, os pedaços de madeira precisam passar seis meses de molho em fezes.

Aqueles que não se racham nem quebram durante esse período são transformados em blocos de impressão, explicou a guia. Em seguida, artesãos aplicam aos blocos uma solução de ervas que afasta ratos e insetos.

As operações de impressão empregam 60 pessoas. Pema contou que os homens trabalham na gráfica há duas décadas, em média, apesar do salário baixo.

Todos os dias eles imprimem cerca de 2.500 folhas de papel, frente e verso, para serem colecionadas como sutras e distribuídas em todo o planalto tibetano.

Em sua época áurea, a gráfica empregava mais de 500 pessoas, quase todas monges do vizinho mosteiro de Gonchen. Hoje em dia, porém, são leigos que trabalham na gráfica.

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Monges e peregrinos fazem cerimônia no monastério de Gonchen, de onde vinham os impressores
Monges e peregrinos fazem cerimônia no monastério de Gonchen, de onde vinham os impressores

O mosteiro é um verdadeiro labirinto de cômodos e corredores. No terceiro piso, alguns homens com lousas de madeira estavam sentados numa salinha escura. Estavam criando "thangkas", grandes pinturas de iconografia budista.

A alguns metros de distância, um tibetano alto de jaqueta preta da Arc'teryx mostrava objetos na sala a um amigo. Ele era Chime Dorje, respeitado médico, defensor da medicina tradicional tibetana e diretor de uma clínica no centro da cidade.

Chime disse que no passado os monges também mantinham uma clínica. Agora, ele e outros são os herdeiros da tradição. Como o processo de impressão no mosteiro, a prática da medicina tibetana conseguiu sobreviver à era de Mao Zedong (1893-1976) e ao advento de uma economia quase de mercado.

"Divulgaram-se mitos de que a medicina tibetana continha grandes quantidades de mercúrio e chumbo, mas na realidade seus ingredientes são normais", ele me disse. "Alguns estudos teóricos também já comprovaram que a medicina tibetana tem base científica."

CIRCUITO SAGRADO

Do lado de fora, peregrinos caminhavam em volta do mosteiro para completar um "kora", ou circuito sagrado. Idosas giravam rodas de oração nas mãos e caminhavam com a ajuda de bengalas.

Pema disse que o monastério é um de três locais de peregrinação do mundo tibetano que representam respectivamente o corpo, a boca e a mente de Buda.

Gilles Sabrie/The New York Times
Peregrinos passam pelo Derge Parkhang para completar a kora, ou circuito sagrado dos budistas
Peregrinos passam pelo Derge Parkhang para completar a kora, ou circuito sagrado dos budistas

A cena em volta do mosteiro evocava costumes antigos, mas não era esse o caso da cidade. Edifícios modernos de cinco andares se alinham pelas paredes do vale ao longo do rio. Guindastes amarelos se elevavam no horizonte —uma cena típica das cidades chinesas, grandes ou pequenas. À noite o céu se iluminava com luzes de néon.

Katia Buffetrille é estudiosa do Tibete na École Pratique des Hautes Études, em Paris. Ela comentou que, quando visitou Derge no ano passado, se surpreendeu com o crescimento da cidade. A última vez que tinha estado lá havia sido três décadas antes.

O mosteiro estava em situação precária em 1985, ela contou. Mas seu prelo estava funcionando, anos após o término da destrutiva Revolução Cultural.

"O prelo opera hoje mais ou menos como em 1985", disse Buffetrille. "É surpreendente a quantidade de páginas que eles imprimem todos os dias. Isso explica a má qualidade ocasional da impressão."

As tradições perduram. Na tarde em que visitei o mosteiro, monges realizavam uma cerimônia de darma numa estrutura do mosteiro separada do prelo. É algo que fazem a cada poucas semanas.

Um monge caminhou pelo pátio lotado aspergindo os fiéis com gotas d'água. Outros estavam sentados sobre um estrado na parte de frente da sala, lendo em voz alta alguns textos impressos manualmente no prelo vizinho.

Tradução de CLARA ALLAIN.


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