Folha de S. Paulo


Análise

Mencheviques russos inspiraram a social-democracia europeia

Os bolcheviques de Petrogrado (São Petersburgo) tinham decidido que não era hora de deflagrar greves no 8 de março de 1917 (23 de fevereiro, no antigo calendário juliano), pois "o partido não estava bastante forte, e o contato entre os soldados e os operários ainda era bastante deficiente" (Trotsky, "A história da Revolução Russa").

Mas aquele era o Dia Internacional da Mulher, e as operárias têxteis desobedeceram os líderes comunistas, decretaram greve e enviaram delegadas aos metalúrgicos, arrastando-os para o movimento. Ali, começou a Revolução de Fevereiro: as jornadas de insurreição popular que desembocariam na renúncia do czar (imperador).

Alexander Nemenov - nov.1990/AFP
Símbolo da foice e do martelo é visto tombado em Moscou em novembro de 1990
Símbolo da foice e do martelo é visto tombado em Moscou em novembro de 1990

Como atesta a queda da Bastilha, em 1789, os líderes políticos são, às vezes, conduzidos por um turbilhão que não controlam. Contudo, na Rússia de 1917, como na França do anoitecer do século 18, o rumo geral das revoluções é configurado no campo de batalha das ideias.

Os partidos de centro e centro-esquerda —que, após a abdicação de Nicolau 2º, constituíram o governo provisório— imaginavam a Rússia como uma democracia constitucional e parlamentar. O fracasso do governo provisório —esmagado sob o peso da guerra, do caos econômico e do desastre social— é decisivo, mas não suficiente, para entender o advento da ditadura comunista.

Os marxistas russos dividiram-se, em 1903, entre bolcheviques e mencheviques. A cisão aprofundou-se e adquiriu dimensão internacional em 1914, diante do dilema de apoiar os governos na guerra europeia ou transformar a guerra em revolução.

Entretanto, sob Lênin, os bolcheviques tinham se acostumado a pensar o futuro da Rússia como um drama em dois grandes atos separados por um hiato de décadas. No primeiro, a "revolução burguesa", o absolutismo czarista seria substituído pela república democrática.

No segundo, a "revolução proletária", o poder socialista tomaria o lugar da república democrática. Nada, nesse esquema, autorizava uma tentativa de "acelerar a História" por meio de uma segunda revolução.

Lênin, porém, mudou bruscamente de rumo em abril de 1917. De volta do exílio, depois de atravessar os territórios controlados pela Alemanha num trem blindado providenciado pelos alemães, anunciou a palavra de ordem "todo o poder aos sovietes".

Inclinando-se às teses de Trotsky sobre a "revolução permanente", o chefe comunista desistia do hiato entre democracia e socialismo. O "poder aos sovietes" (conselhos operários) era a senha para a derrubada do governo provisório pelos bolcheviques. A perspectiva de uma Rússia parlamentar, pluripartidária, desaparecia do horizonte revolucionário.

Na noite de 7 de novembro (25 de outubro), o partido de Lênin tomou o Palácio de Inverno. A Revolução de Outubro não foi um levante popular, mas uma operação militar conduzida pelos soldados do regimento de Petrogrado e pelos marinheiros da base de Kronstadt, que obedeciam ao comando bolchevique.

Inaugurava-se, no dia seguinte, o Congresso Pan-Russo dos Sovietes, uma assembleia nacional de delegados operários. Os bolcheviques tinham a maioria nesse estrato minoritário da população russa. Segundo o roteiro previsto, os sovietes avalizaram o governo comunista instalado horas antes.

O "poder aos sovietes" significava, de fato, a ditadura do partido revolucionário.

Uma Assembleia Constituinte foi eleita em 25 de novembro. Sua convocação era um dos raros consensos entre os partidos anti-czaristas. Mas, do ponto de vista bolchevique, ela representava uma relíquia do esquema anterior ao retorno de Lênin.

Na Constituinte, a maioria alinhava-se com os partidos de centro-esquerda (socialistas-revolucionários e mencheviques). Os bolcheviques e seus aliados tinham menos de um terço dos deputados.

Lênin exortou os constituintes a referendarem as decisões dos sovietes, abrindo mão da soberania popular. Frente à esperada negativa, dissolveram a Assembleia à força. Os comunistas não precisavam ter o apoio da maioria: bastava-lhes a companhia das "leis da História".

De abril a novembro, a esquerda bifurcou-se em duas correntes irreconciliáveis. Lênin condenou os mencheviques à "lata de lixo da História". Sem saber, inaugurava, com aquelas palavras, a distopia totalitária do stalinismo.

Já os derrotados mencheviques inspiraram a social-democracia europeia. Cem anos depois de Fevereiro, a tradição deles ainda faz parte do diálogo político relevante. Não se pode dizer o mesmo do leninismo.


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