Folha de S. Paulo


Indício de interferência russa em pleito holandês deixa UE em alerta

Harry van Bommel, um parlamentar holandês esquerdista, contava com aliados persuasivos para convencer os eleitores de que eles deveriam rejeitar um acordo de livre comércio com a Ucrânia –sua "equipe ucraniana especial", um grupo de imigrantes alegremente do contra cujas simpatias estão com a Rússia.

Eles participaram de audiências públicas e programas de televisão, e usaram as redes sociais para denunciar o governo pró-Ocidente da Ucrânia como uma sanguinária cleptocracia indigna do apoio holandês. Nas palavras de Bommel, a participação deles "veio a calhar para lembrar aos holandeses que nem todos os ucranianos apoiavam" o tratado.

Ainda que o apoio tenha vindo a calhar, não se pode defini-lo como espontâneo: a maioria dos membros do grupo vinha da Rússia, ou das regiões de fala russa na Ucrânia, e simplesmente repetia a linha do Kremlin.

Um plebiscito sobre o pacto, realizado em abril do ano passado, foi transformado em uma arma cujo objetivo era influenciar a União Europeia (UE) como um todo. Os eleitores holandeses rejeitaram o tratado comercial entre a UE e a Ucrânia, agradando Moscou, encorajando os populistas favoráveis à Rússia e incomodando as elites políticas do mercado unificado.

Não se sabe se a equipe ucraniana era dirigida pela Rússia ou se estava agindo simplesmente por compartilhar das opiniões do Kremlin, e Bommel disse que jamais verificou as identidades de seus integrantes. Mas a elite política europeia, já abalada pelo resultado do plebiscito que determinou a saída britânica da UE e pela eleição de Donald Trump para a Presidência dos Estados Unidos, está preocupada com a possibilidade de que o plebiscito na Holanda seja um prenúncio para futuros desdobramentos.

Com eleições na França, Alemanha e possivelmente Itália marcadas para este ano, as autoridades de toda a Europa estão alertando sobre interferência ativa da Rússia, o que ecoa as afirmações da CIA (Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos) sobre a interferência de Moscou na eleição presidencial norte-americana do ano passado.

A Noruega anunciou este mês que hackers vinculados à Rússia haviam atacado ministérios do governo e um partido político do país. O ministro da Defesa britânico acusou Moscou de "transformar a desinformação em arma". Autoridades alemãs, francesas e italianas também acusaram ativistas vinculados à Rússia de interferir em assuntos de seus países.

A Holanda realizará eleições nacionais em 15 de março, e agentes dos serviços de inteligência do país dizem que outras nações, especialmente a Rússia, tentaram centenas de vezes invadir os computadores de agências do governo e empresas holandesas. O jornal holandês "Volkskrant" reportou na semana passada que os dois grupos de hackers russos que invadiram computadores do comitê nacional do Partido Democrata na campanha eleitoral americana estavam entre as organizações identificadas como envolvidas nos ataques à Holanda.

O Ministério do Interior holandês anunciou que toda a apuração da eleição de março será realizada manualmente, de forma a remover os computadores do processo eleitoral e acalmar o medo quanto a ações de hackers vinculados a "agentes de Estado" não identificados.

"As pessoas que estão no poder se preocupam –há motivos mais que suficientes para alarme quanto a uma possível interferência em eleições", disse Sibren de Jong, do Centro de Estudos Estratégicos de Haia, uma organização de pesquisa sediada na cidade-sede do governo holandês. "Mas o verdadeiro risco são os populistas que, sabendo disso ou não, defendem a agenda russa, porque sabem que ela é inimiga do status quo na Europa, que eles desejam destruir. Tudo que a Rússia precisa fazer é se acomodar e esperar que os populistas ajam como ela deseja."

Até agora, ninguém obteve provas concretas de que o Estado russo, e não cidadãos do país agindo individualmente, está trabalhando para distorcer a eleição, e muita gente não compreende por que Moscou se incomodaria em fazê-lo no caso de um país pequeno como a Holanda, que não tem o peso geopolítico dos Estados Unidos ou da Alemanha. Mas Jong disse que o plebiscito do ano passado demonstrou que "um pequeno esforço pode ter grandes efeitos", e ajudar a "destruir a União Europeia por dentro."

A Holanda deveria ser território difícil para as operações russas. No ano passado, o Conselho de Segurança Holandês vinculou a Rússia à morte de 298 pessoas –entre as quais quase 200 cidadãos holandeses– em um jato de passageiros que decolou de Amsterdã e foi abatido em julho de 2014 sobre território controlado por rebeldes armados pela Rússia no leste da Ucrânia.

A conclusão da investigação foi um desastre de relações públicas para Moscou, e hackers russos atacaram os computadores da agência holandesa, enquanto simpatizantes da Rússia na Holanda, entre os quais membros da equipe ucraniana de Bommel, trabalhavam incansavelmente para propor teorias alternativas implausíveis quanto à causa da queda do jato Boeing da Malaysia Airlines, abatido por rebeldes ucranianos pró-russos em 2014.

Geert Wilders, o mais conhecido militante anti-Europa, anti-imigração e antielite do país, manteve a distância com relação a Moscou, ao contrário de líderes populistas da França e Itália. Mas se Wilders, cujo partido lidera as pesquisas de intenção de voto para a eleição de março, não é aliado de Moscou, sua agenda de oposição à UE se enquadra perfeitamente à agenda mais ampla do Kremlin, de enfraquecer o bloco e desmantelar a unidade europeia contra a Rússia.

Sico van der Meer, pesquisador do Instituto Holandês de Relações Internacionais, disse que a Rússia encara o Ocidente como adversário e tem claro interesse na eleição de populistas inimigo das elites, porque todos eles, não importa que opinião tenham sobre a Rússia, desejam solapar a União Europeia e, em alguns casos, também a Organização para a Otan (aliança militar ocidental.

Os russos, ele acrescentou "acreditam que enfraquecer o inimigo faz com que você se fortaleça".

O serviço de inteligência holandês, AIVD, em uma avaliação sobre as atividades russas divulgada ao público, concordou em que medir a escala da interferência associada ao Estado russo era extremamente difícil, já que os esforços de Moscou para influenciar a opinião pública "ocorrem na zona crepuscular entre a diplomacia e a espionagem".

Mas o relatório também apontou para o fato de que a Holanda se tornou alvo de "uma campanha mundial para influenciar as políticas e percepções quanto à Rússia", e que, como parte desse esforço, Moscou faz uso de "uma rede de contatos construída ao longo de anos".

Um desses contatos é Vladimir Kornilov, historiador e analista político nascido na Rússia, criado no leste da Ucrânia e hoje morador de Haia, onde ele comanda uma organização de pesquisa –de um homem só– chamada Centro para o Estudo da Eurásia. E-mails roubados por um grupo de hackers pró-ucranianos mostram que Kornilov ofereceu informações e conselhos a políticos e outras pessoas em Moscou, como parte de seu trabalho anterior para um instituto de pesquisa sediado em Kiev mas bancado pelos russos.

Antes do plebiscito holandês do ano passado, Kornilov fez campanha contra o tratado comercial com a Ucrânia, descrevendo-se, benignamente, como "expatriado ucraniano que vive em Haia", e se declarando "espantado com a corrente aparentemente infinita de mentiras e propaganda" sobre a Rússia, o que segundo ele o colocava na obrigação de responder.

"Depois do plebiscito aqui, todo mundo pensava que isso era um problema só holandês, mas agora vemos que era apenas o começo", disse Kornilov em entrevista, negando conexões financeiras ou de qualquer outra ordem com o Estado russo. "Há uma imensa crise na União Europeia".

E ele não está sozinho em seu trabalho pela causa. Contatou Bommel e Thierry Baudet, presidente do Fórum pela Democracia, um grupo político conservador logo em seguida convertido em partido político que se alinha com a Rússia sobre diversas questões e disputará a eleição de março com uma plataforma de hostilidade à UE.

Durante a campanha para o plebiscito, Baudet postou uma mensagem no Twitter afirmando que a Ucrânia "não é um Estado-nação", e compartilhou uma falsa reportagem sobre soldados ucranianos que teriam crucificado um menino russófono de três anos de idade no leste da Ucrânia. A história sobre a crucifixão começou com uma falsa reportagem veiculada no principal canal de TV estatal russo, que entrevistou uma suposta testemunha ucraniana da crucifixão, posteriormente identificada como atriz russa.

A falsa história de crucifixão circulou pela mídia social e foi seguida por um exercício ainda mais estrondoso de falsa notícia, um vídeo postado no YouTube que supostamente mostrava membros do Batalhão Azov, um grupo de militantes ucranianos, queimando a bandeira holandesa e ameaçando ataques terroristas caso os eleitores holandeses não apoiassem a Ucrânia.

O vídeo não demorou a ser descartado como fraude e foi posteriormente vinculado pelo Bellingcat, um site investigativo britânico, a um instituto russo em São Petersburgo que produz notícias falsas e ataca os críticos da Rússia online, usando a mídia social como sistema de distribuição. Esse tipo de organização é conhecido como "troll factory".

"Tudo que o Kremlin precisa fazer é apertar o botão de like ou o de retweet, e depois esperar o resultado e agradecer", disse Jong, o pesquisador.

O anonimato da internet, ele acrescenta, torna difícil distinguir entre pessoas comuns expressando opiniões genuínas e trolls que agem a serviço de Estados. "Não há provas claras, só um mar de rumores", reconheceu Jong.

Giuseppe Cacace - 29.jan.2016/AFP
This file photo taken on January 29, 2016 shows Dutch far-right Freedom Party leader Geert Wilders speaking during a press conference at the end of the first ENF (Europe of Nations and Freedom) congress in Milan. Dutch anti-Islam MP Geert Wilders will appeal his conviction for discriminating against Moroccans as he believes the verdict is a
Geert Wilders, líder da extrema direita na Holanda

Baudet, em entrevista e m Amsterdã, negou reproduzir propaganda russa e disse que só tentava rebater o que ele define como "notável russofobia da Europa" e garantir que o lado russo da história também seja ouvido.

A Ucrânia enviou membros do governo e ativistas à Holanda para fazer campanha pelo "sim" ao tratado, e eles apresentaram seu país como vitima da agressão russa. Mas, ao contrário de alguns dos ativistas do lado oposto, os ucranianos declararam abertamente sua identidade e afiliação.

Michiel Servaes, membro trabalhista do Parlamento holandês, fez campanha em defesa do acordo com a Ucrânia e disse que pessoas como Baudet promoviam uma narrativa "idêntica à que poderia ser usada por um porta-voz do Kremlin". Ele recorda ter enfrentando uma barragem de críticas, em uma audiência pública, de um espectador que se identificou como ucraniano mas na realidade era russo.

"Foi realmente um choque", disse Servaes. "Pessoas que se diziam ucranianas mas eram na verdade russas".

Bommel reconheceu que alguns de seus auxiliares "ucranianos" talvez fossem russos, mas disse que não era responsabilidade sua verificar as identidades deles.

"Nunca peço para ver os passaportes das pessoas", ele disse, em entrevista em Haia. "Se apoiam nossa plataforma política, são bem vindos".

Um membro especialmente ativo da equipe ucraniana era Nikita Ananjev, 26, nascido em Moscou mas emigrado para a Holanda com sua mãe. Ele hoje preside a Associação de Estudantes Russos no país.

Ananjev disse ter participado de mais de 15 assembleias públicas em diversos locais da Holanda, durante a campanha do plebiscito, discursando contra o acordo com a Ucrânia e contra o que ele descreve como "nomenclatura enferrujada e corrupta" da UE e suas posições injustamente negativas sobre a Rússia.

Ananjev, que estuda em universidade na cidade de Twente, na Holanda, esteve em Moscou em 2013 para um curso de lideranças jovens, em um programa patrocinado pela Rossotrudnichestvo, organização estatal russa que promove intercâmbios culturais e trabalha para promover no exterior as posições de Moscou. Em dezembro, ele visitou Bruxelas para o Fórum Europeu sobre a Rússia, um encontro anual de políticos e especialistas simpáticos a Moscou, promovido pelo Ministério do Exterior russo.

Queixando-se de que os russos que defendem seu país e criticam os adversários deste são muitas vezes caracterizados incorretamente como agentes de inteligência, Ananjev declarou em entrevista que "não sou espião. Pelo menos ainda não".

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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