Folha de S. Paulo


Cresce o fluxo de migrantes rumo ao México sem interesse nos EUA

Wendy já não se preocupa que seus filhos não cheguem à escola quando eles saem do apartamento pela manhã. As lembranças das gangues que atormentavam a família em Honduras estão lentamente desaparecendo.

A família fugiu de lá no ano passado, depois que membros de uma gangue tentaram recrutar os meninos, ameaçando matá-los se eles não aderissem. Eles receberam asilo no México, o que os coloca no grupo de mais recentes residentes do país.

Mauricio Lima - 21.out.2016/The New York Times
A migrant family from El Salvador poses for a portrait at their dormitory in a shelter in Tapachula, Mexico, Oct. 21, 2016. A growing number of migrants are putting down roots in Mexico, legally or illegally, instead of using it as a thruway to the United States. (Mauricio Lima/The New York Times)
Família de imigrantes salvadorenhos posa para foto em abrigo em Tapachula, no México

"Não é fácil começar de novo –como você pode imaginar", disse Wendy em uma entrevista em Saltillo, uma pequena cidade no nordeste do México que a família escolheu como seu novo lar. "Mas vivemos melhor aqui, porque é mais seguro".

Os Estados Unidos foram por muito tempo o destino dos sonhos para muitos migrantes latino-americanos, quer para fugir à pobreza, quer para escapar da inquietação política, desastres naturais ou violência.

Mas, agora, um crescente número de migrantes opta por fincar raízes no México, legal ou ilegalmente, em vez de simplesmente passarem por lá a caminho dos EUA.

As razões para que fiquem podem ser muitas. Cruzar a fronteira entre os EUA e o México se tornou cada vez mais difícil, dizem os migrantes, especialmente com o aumento nos valores cobrados pelos contrabandistas de pessoas e com a fiscalização mais severa.

Alguns deles se deixam dissuadir pela abundância de perigos que precisam ser enfrentados no percurso através do México. Outros acreditam que possa ser mais fácil obter alguma forma de permanência legal no México do que nos EUA.

Nas últimas semanas, outro fator começou a pesar sobre os migrantes que rumam ao norte: o presidente dos EUA, Donald Trump. Mesmo que todos os detalhes de suas recentes declarações quanto à política de imigração ainda não sejam conhecidos dos interessados em seguir rumo aos EUA, suas constantes promessas de restringir a imigração alimentaram uma percepção crescente, entre os migrantes, de que os EUA estão se tornando muito menos hospitaleiros para os imigrantes, tanto os legais quanto os ilegais.

"Aqui pelo menos as pessoas gostam de você, elas ajudam", disse Josué, 31, imigrante ilegal vindo de Honduras que está hospedado na Casa del Migrante, um abrigo para imigrantes em Saltillo. "Por que alguém desejaria ir para um país que não gosta de nós?"

Como outros migrantes entrevistados, Josué pediu que sua identidade fosse ao menos em parte protegida, dada sua falta de documentação. Outros disseram que temiam ser localizados por aqueles que os perseguem.

Josué veio para o México cerca de um ano atrás, com a intenção de passar pelo país a caminho dos EUA, ele diz. Mas conseguiu encontrar emprego e gostou do México a ponto de decidir ficar no país por algum tempo, antes de retomar sua viagem.

Com a ascensão de Trump, porém, e as promessas do presidente de endurecer os controles de fronteira dos EUA e acelerar as deportações, Josué decidiu ficar no México pelo futuro previsível.

"No meu caso, eu gostaria de ir aos EUA para trabalhar", ele disse em recente entrevista no abrigo. "Mas o presidente, ele não quer ninguém lá, porque não gosta de ninguém". Josué agora busca de maneiras de legalizar sua situação no México.

O número de migrantes que decidem permanecer no México ainda é visto como apenas uma pequena fração das centenas de milhares de pessoas que usam o país como corredor de trânsito para entrar nos EUA.

Mas os crescentes atrativos do México são claramente refletidos no programa de asilo do país. No ano passado, mais de 8.100 estrangeiros solicitaram asilo no México, total quase três vezes maior que em 2015, e mais 15 vezes superior ao de cinco anos atrás, de acordo com estatísticas do governo mexicano.

Ao mesmo tempo, o México, que está sendo pressionado pelos defensores dos imigrantes, vem concedendo asilo em ritmo cada vez mais alto, em parte por conta de melhoras em seu sistema de recepção e processamento.

Em 2016, 63% dos solicitantes, excluídos aqueles que abandonaram seus pedidos nas fase de revisão, receberam asilo ou alguma forma de proteção, ante 46% em 2015.

A maioria dos solicitantes, nos últimos anos, vem de El Salvador e Honduras, que vêm sofrendo seriamente com a violência das gangues.

O governo mexicano e a ONU (Organização das Nações Unidas) patrocinaram um programa piloto em Saltillo para ajudar a integrar os solicitantes de asilo à sociedade do México. Iniciado em agosto, o programa envolve 38 pessoas que receberam asilo. Delas, 26 continuam no programa, enquanto as demais o deixaram e se transferiram a outros países.

Saltillo foi escolhida porque tem muitas oportunidades de emprego e é relativamente calma e segura, disseram funcionários da ONU.

Ainda assim, para muita gente a atração dos EUA é difícil de extinguir.

Wendy e seu marido, José, encontraram emprego –ele com uma empresa de ar condicionado e ela como faxineira na casa de uma família. Os meninos estão felizes em sua nova escola, e já começaram a fazer amigos. Mas a família está enfrentando dificuldades para cobrir suas despesas.

"Ainda tenho a aspiração de ir para os EUA ou o Canadá, um dia", José admitiu, sentado ao lado de Wendy na cozinha de seu apartamento. Os dois estavam usando casacos pesados, dentro de casa, porque não podem arcar com o custo de aquecedores.

Wendy percebeu para onde a conversa estava se encaminhando –era um caminho que os dois haviam percorrido muitas vezes, claramente– e logo interferiu.

"Nossa ideia é termos uma casa própria, criarmos um negócio –essa é a ideia", ela disse, entusiasticamente. "Se tivermos casa própria, fico aqui pelo resto da vida".

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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