Folha de S. Paulo


Guerrilheiros das Farc se apresentam nas zonas de segurança do governo

As cenas que se viram nas estradas do interior da Colômbia nas últimas semanas parecem as dos filmes que reconstroem o fim das grandes guerras. E, no fundo, parece se tratar disso mesmo.

A bordo de jipes, furgões e lanchas, milhares de guerrilheiros das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) saíram dos acampamentos provisórios em que estiveram nos últimos meses e começaram a dirigir-se às 26 zonas de segurança, estabelecidas pelo governo em 14 departamentos (províncias).

Carregavam bandeiras brancas, apesar de não terem largado ainda seus fuzis e metralhadoras. De acordo com o combinado, cada um podia levar também uma mochila e animais de estimação.

Presidencia de Colombia - 5.fev.2017/Xinhua
Veículos das Farc chegam a uma zona de segurança em El Paraíso, no departamento de La Guajira
Veículos das Farc chegam a uma zona de segurança em El Paraíso, no departamento de La Guajira

Dependendo da comunidade da qual se despediam, havia gente nas ruas para dizer adeus, também acenando com panos brancos. Houve cenas de choro entre guerrilheiros, familiares e moradores dos locais onde algumas frentes estiveram por décadas.

Em outras localidades, a despedida foi marcada por um ar de hostilidade ou de indiferença. Não ocorreram agressões, uma vez que os guerrilheiros iam escoltados pelo Exército e por observadores da ONU.

Em visita ao interior do país, no fim do ano passado, a Folha verificou que os sentimentos com relação às Farc variam de região para região. Se em muitas seus membros praticaram a extorsão, o sequestro e outros crimes, em outras, principalmente as mais humildes, a guerrilha também fazia as vezes do Estado, ajudando a população em termos de logística e mesmo de segurança contra ataques de outros grupos criminosos.

"Em geral nossa relação com as comunidades sempre foi pacífica, nosso enfrentamento é com o sistema. E seguiremos nessa nossa luta, só que desta vez pela via política, por meios democráticos", disse à Folha, por telefone, um dos representantes da frente antes instalada no Valle del Cauca, que não quis se identificar.

"Já estão praticamente todos reunidos", disse, no meio da semana passada, um dos líderes da negociação de paz, Sergio Jaramillo, referindo-se aos 6.300 guerrilheiros instalados nesses alojamentos provisórios.

As zonas foram escolhidas de forma a estarem distantes de grandes centros urbanos. Por conta disso, o acesso não foi fácil, vários veículos atolaram no barro e, em algumas delas, as instalações não ficaram prontas a tempo.

"Para demonstrar boa vontade, estamos ajudando o governo a terminar o que não ficou pronto", disse um dos líderes das Farc, Iván Márquez, diminuindo as dificuldades logísticas que atrasaram a chegada dos guerrilheiros a esses locais —prevista para o último dia 31, mas que só foi completada mesmo neste domingo (12).

Os territórios em que terão de viver nos próximos quatro meses têm 15 quilômetros quadrados cada um e contêm apenas o básico: dormitórios, cozinha, água e esgoto e uma área comum. Ao entrar, os guerrilheiros registraram as armas e identificaram-se. Até o fim do período, só poderão sair da zona com autorização e desarmados.

O perímetro de cada zona é vigiado pelas Forças Armadas, sob monitoramento da ONU. A ideia é proteger os guerrilheiros de seus antigos inimigos: bandos criminosos, paramilitares ou fazendeiros e comerciantes que as Farc costumavam extorquir.

Os próximos passos, seguindo os termos do acordo, é que entreguem as armas, em três fases. Também durante o período em que estarão nessas zonas, será definido seu futuro imediato: quais terão direito à anistia (os que tiverem cometido crimes menores ou vinculados à atividade política, segundo os termos do documento) e quais sairão para enfrentar julgamento por meio da Justiça Transicional —tribunal especial também aprovado no acordo.

Relatos dos que estão nos acampamentos dão conta de que os guerrilheiros seguem tendo um cotidiano regrado. Acordam cedo, realizam tarefas comunitárias e realizam workshops de política e de instrução sobre como gastar o benefício mensal que agora passam a receber do governo (90% de um salário mínimo) e como procurar trabalho ou vagas em escolas e universidades.

Enquanto isso, a cúpula das Farc já estuda a estratégia para a participação nas eleições legislativas de 2018. Dependendo da região do país, a guerrilha tem entre 6% e 18% de popularidade.

DISSIDENTES

Nem tudo, porém, é festa neste momento. E para isso basta olhar os números. Estima-se que as Farc tenham entre 7.000 e 8.000 membros. Portanto, o número dos que se apresentaram, até agora, não fechou.

Parte destes ausentes são dissidentes já declarados, outra estima-se de que sejam indecisos. Já houve uma leva que, em julho de 2016, havia decidido que não tomaria parte no acordo. Foram os membros da Frente Primeira, uma das mais antigas.

Entre o plebiscito de 2 de outubro, em que a população disse "não" ao acordo, e a redação e aprovação de um novo texto, por meio do Congresso, que se deu apenas em dezembro, mais guerrilheiros desanimaram e desistiram do esforço.

Foi então que cinco representantes de médio e alto comando anunciaram sua deserção, levando consigo entre 80 e 300 guerrilheiros, segundo estimativas oficiais.

Não se sabe ao certo se esses desertores irão formar uma nova agrupação ou juntar-se a outras guerrilhas e facções criminosas. O comando das Farc anunciou que estão banidos e proibidos de usar o nome da guerrilha em suas futuras atividades.

A dissidência, porém, preocupa o presidente e Nobel da Paz Juan Manuel Santos, que por conta disso acelerou o início das negociações de paz com o ELN (Exército de Libertação Nacional), a segunda maior guerrilha do país. As conversas com esse grupo, também em conflito com o Estado há mais de 50 anos, começaram na semana passada, em Quito.

E a preocupação não é apenas do governo colombiano, mas também de países vizinhos. Afinal, os dissidentes pertencem a frentes que costumavam atuar em zonas fronteiriças com a Venezuela e o Brasil e estavam vinculadas ao narcotráfico.

Estima-se que não tenham desejado abandonar essa atividade lucrativa em troca de um benefício mensal tão baixo ou que não esperavam ser anistiados por terem cometido crimes demasiado graves.

(articleGraphicCredit)..

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O que há nas zonas de segurança
São formadas, em sua maioria, por conjuntos de dormitórios, com cozinha e espaços comuns

Como é a segurança
As zonas são vigiadas por tropas do Exército colombiano sob monitoramento das Nações Unidas. O objetivo é proteger os guerrilheiros de possíveis ataques de grupos inimigos das Farc, como ex-paramilitares, facções criminosas e outras guerrilhas com quem tenham disputado território no passado

O que os guerrilheiros puderam levar com eles
Cada guerrilheiro pôde entrar com uma mochila de até 20 quilos e sua arma. Todos os armamentos foram catalogados e receberam um código de barras

Como será a entrega das armas
Os guerrilheiros terão 180 dias para entregar todas as armas, sob orientação da ONU. A ideia é que as armas sejam destruídas e, com seus restos, sejam construídos três monumentos aos mortos na guerra: na Colômbia, em Havana, onde ocorreram as conversas de paz, e na sede da ONU, em Nova York

Duração das zonas
Elas existirão por quatro meses. Nesse período, será decidido quais guerrilheiros serão anistiados e quais irão enfrentar processos nos tribunais especiais. Eles só sair das zonas temporariamente e com autorização, deixando a arma no acampamento

Dissidentes
Governo e Farc dizem que desertaram cinco comandantes, com 200 a 300 homens


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