Folha de S. Paulo


Análise

Resultado de batalha jurídica ajudará a definir cara dos EUA

O direito sempre lê e explica as coisas segundo uma linguagem que lhe é própria.

O decreto de Trump restringindo a entrada de estrangeiros é, na essência, uma medida populista, mal pensada e pobremente executada, pouco apropriada para realizar o objetivo que declara, de eliminar os riscos de ataques terroristas.

Yin Bogu - 4.fev.2017/Xinhua
Homem segura placa dizendo
Homem segura placa dizendo "Refugiados, bem-vindos" em protesto contra Trump em Washington

Boa parte do mundo entendeu o decreto, ainda que poucos o tenham lido, como uma tentativa de impedir a entrada de muçulmanos. Sob vários disfarces, é disso mesmo que se trata.

A polêmica, quando transferida para o campo do direito, perde um pouco de seu sabor ao ser traduzida e fatiada em questões técnicas que pedem precisão de raciocínio e de linguagem.

Na batalha jurídica travada neste momento, interpreta-se o texto para extrair as obrigações e restrições nele contidas; pergunta-se se Trump, como presidente, tem poderes para legislar sozinho sobre a matéria e se os decretos presidenciais estão sujeitos a controle de legalidade e constitucionalidade por parte dos tribunais.

Quer-se saber, também, se o juiz federal que mandou interromper a implementação do decreto em todo o território dos EUA tinha competência para fazê-lo; se os Estados da federação que entraram com o pedido cautelar tinham legitimidade para aparecer perante o juiz em um caso assim; se os tribunais superiores podem reverter a decisão e, finalmente, se algo assim pode chegar à Suprema Corte, especialmente se decisões contraditórias se multiplicarem nas esferas inferiores.

No que tem de mais drástico, o decreto suspende imediatamente a entrada de nacionais de alguns países e de refugiados. A lista tão falada de sete países não consta como tal do texto.

O decreto faz uma remissão a outra legislação, que impede a entrada sem visto nos EUA de pessoas com dupla nacionalidade, uma delas dispensada de visto, mas a outra sendo de um país "preocupante". A lista atualizada dos "preocupantes" é aquela noticiada, dos sete países de maioria muçulmana.

Com a implementação imediata das restrições, vários juízes federais começaram a desafiar sua legalidade e a suspender seus efeitos em casos particulares. A decisão do juiz do Estado de Washington foi a primeira a ter efeito nacional e generalizado.

Um juiz federal tem essa autoridade. Neste caso, provocado por dois Estados da federação (Washington e Minnesota), ele considerou que ambos estavam legitimados a fazer a demanda, que havia uma grande possibilidade de terem razão sobre o mérito da ação (ainda a ser decidido) e que havia risco de seus direitos, e aqueles de seus residentes, serem irremediavelmente prejudicados.

Não está claro, na decisão, quais aspectos do decreto feririam quais preceitos legais ou constitucionais, mas considera-se que quase certamente há ilegalidade ou inconstitucionalidade.

O que está claramente disposto é o conjunto de prejuízos que os Estados e seus residentes, estudantes e profissionais portadores das sete nacionalidades sofreriam.

A decisão impede as autoridades de implementar a proibição de entrada dessas pessoas e de refugiados e a discriminação entre refugiados de grupos religiosos majoritários e minoritários em seu países.

O governo federal pediu a uma corte de apelação regional que revertesse a decisão do juiz de primeira instância. A corte recusou-se a fazê-lo e, agora, ouvirá as duas partes, os Estados de um lado e o governo do outro, já nestes primeiros dias da semana.

O jogo de mecanismos processuais em que há visões conflitantes sobre a substância das normas jurídicas está nos seus primeiros lances. O destino de muitas pessoas depende desse jogo, e o resultado final ajudará a definir a cara, talvez nova, dos EUA.


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