Folha de S. Paulo


Estilo de Gorsuch ecoa o de juiz que deverá substituir na Suprema Corte

Nicholas Kamm - 31.jan.2017/AFP
Judge Neil Gorsuch speaks, after US President Donald Trump nominated him for the Supreme Court, at the White House in Washington, DC, on January 31, 2017. President Donald Trump on nominated federal appellate judge Neil Gorsuch as his Supreme Court nominee, tilting the balance of the court back in the conservatives' favor. / AFP PHOTO / Nicholas Kamm
O juiz Neil Gorsuch faz discurso na Casa Branca após ser indicado pelo presidente Donald Trump

Um ano atrás, o juiz Neil M. Gorsuch estava esquiando quando seu celular tocou. Disseram-lhe que o juiz Antonin Scalia tinha morrido.

"Perdi o pouco fôlego que ainda me restava", contou Gorsuch em discurso, dois meses mais tarde. "E não me envergonho de dizer que desci a montanha sem enxergar nada por causa das lágrimas."

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Ao indicar Gorsuch para a Suprema Corte, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, escolheu um juiz que não apenas admira o juiz cujo lugar pode tomar mas também se assemelha a ele, sob muitos aspectos. Gorsuch compartilha a filosofia jurídica de Scalia, seu dom de escrever de modo instigante e seu amor pela vida ao ar livre.

Mesmo assim, a escolha dele por Trump causou surpresa, vinda de alguém que em sua campanha se descreve como outsider em Washington. Gorsuch possui raízes profundas na capital e no establishment que Trump tanto criticou.

Sua mãe foi funcionária de alto escalão na administração Ronald Reagan (1981–1989). Gorsuch passou parte de sua infância em Washington e praticou direito na cidade por uma década, em uma respeitada firma de advocacia e no Departamento de Justiça. E, como todos os juízes atuais do Supremo, diplomou-se em algumas das universidades mais tradicionais do país, tendo feito faculdade em Columbia e cursado direito em Harvard.

Com 49 anos de idade, Gorsuch –indicado para a 10º Tribunal de Recursos, em Denver, pelo presidente George W. Bush–, Gorsuch é "originalista" –ou seja, procura interpretar a Constituição como ela foi entendida por aqueles que a redigiram e adotaram. Esse enfoque o conduz a resultados geralmente, mas nem sempre, conservadores.

"Cabe a nós interpretar a Constituição", ele escreveu no ano passado em um documento de concordância com um veredicto. "E a Constituição não é uma mancha de tinta na qual as partes em litígio possam projetar seus sonhos e esperanças."

Ele nunca escreveu extensamente sobre vários pontos que são importantes para muitos conservadores, incluindo o controle de armas e os direitos dos gays, mas assumiu posições fortes em favor da liberdade religiosa, o que lhe valeu a admiração da direita.

Em dois processos de grande destaque, ambos os quais chegaram à Suprema Corte, Gorsuch se alinhou com empregadores que, por motivos religiosos, não queriam oferecer a suas funcionárias alguns tipos de cobertura médica de anticoncepcionais.

Ele votou em favor da Hobby Lobby Stores, empresa familiar que fez objeções a dispositivos da lei de reforma da saúde promulgada por Obama exigindo que muitos empregadores oferecessem cobertura gratuita de métodos contraceptivos. E discordou de uma decisão de não voltar a ouvir uma sentença que obrigava a ordem de religiosas Irmãzinhas dos Pobres de cumprir um aspecto das normas.

O Supremo decidiu em favor da Hobby Lobby em 2014 e em 2016 revogou a decisão relativa à ordem religiosa.

Como Scalia, Gorsuch tem uma visão ampla da Quarta Emenda constitucional, que proíbe o governo de fazer revistas e apreensões não justificadas.

Gorsuch nunca hesitou em assumir posições que, para alguns críticos, têm viés partidário. Ele criticou liberais por irem aos tribunais em vez de ao Legislativo para alcançar suas metas políticas. E pediu que o poder dos reguladores federais seja limitado.

Nan Aron, presidente da organização liberal Aliança pela Justiça, disse que a postura de Gorsuch sobre a regulamentação federal é "altamente problemática" e "ainda mais radical que a de Scalia".

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"Desobrigar os tribunais de deferir o parecer de agências governamentais quando uma lei aprovada pelo Congresso é ambígua", ela disse, "vai fazer com que seja muito mais difícil para as agências federais lidarem com muitas questões cruciais, incluindo direitos trabalhistas, proteções do consumidor, proteções financeiras e leis ambientais."

Em um artigo publicado na publicação "National Review" em 2005, escrito antes de ele tornar-se juiz, Gorsuch criticou liberais por preferem o litígio ao processo político.

Ele escreveu: "Os liberais americanos ficaram 'viciados' nos tribunais, dependendo de juízes e advogados em vez de líderes eleitos e da urna, usando-os como sua maneira principal de implementar sua pauta social em relação a tudo, desde o casamento gay até o suicídio assistido e o uso de 'vouchers' para o estudo em escolas privadas. Essa dependência exagerada dos tribunais como o lugar para se debater políticas sociais é prejudicial ao país e ao Judiciário."

Se a indicação de Gorsuch ao Supremo for confirmada pelo Senado, a corte vai voltar a viver uma dinâmica que já lhe é familiar, com o juiz Anthony M. Kennedy, conservador moderado, tendo o voto de desempate em muitos processos muito disputados.

Neil Gorsuch nasceu em Denver mas se mudou para Washington na adolescência quando sua mãe, Anne Gorsuch, entrou para a administração do presidente Ronald Reagan, tornando-se a primeira mulher a dirigir a Agência de Proteção Ambiental (EPA). Conhecida depois de seu casamento como Anne Burford, ela se demitiu após 22 meses, criticada pelo Congresso.

Depois de cursar direito, Gorsuch estudou na Universidade Oxford, na Inglaterra, obtendo um doutorado em filosofia jurídica.

Durante um ano ele foi assistente do juiz David B. Sentelle, membro conservador do Tribunal de Recursos do Distrito de Columbia.

Em seguida, foi assistente judicial do juiz Byron R. White, então membro aposentado da Suprema Corte. Como é a praxe da corte, White dividia seu assistente com um juiz ativo da Corte, Kennedy.

Em seguida, Gorsuch praticou direito por uma década na firma de advocacia Kellogg, Huber, Hansen, Todd, Evans & Figel, em Washington, antes de trabalhar no Departamento de Justiça entre 2005 e 2006.

Ele é autor do livro "The Future of Assisted Suicide and Euthanasia" (O Futuro do Suicídio assistido e da Eutanásia, em português), publicado em 2006 pela editora da Universidade Princeton. O livro argumenta que as leis que proíbem o suicídio assistido e a eutanásia devem ser conservadas.

Em um artigo de 2002 refletindo sobre a morte de White, Gorsuch criticou o modo como o Senado sabatina juízes. "Alguns dos indicados judiciais mais respeitáveis recebem tratamento impróprio", ele disse, mencionando dois candidatos ao tribunal de recursos de Washington que "eram amplamente vistos como alguns dos melhores advogados de sua geração".

Um deles era John G. Roberts Jr., que se tornaria presidente da Suprema Corte dos Estados Unidos. O outro era o juiz Merrick B. Garland, cuja indicação ao tribunal de recursos foi confirmada em 1997 após uma demora longa, mas cuja indicação para ocupar a vaga deixada pela morte de Scalia no ano passado foi bloqueada pela bancada republicana no Senado.

Tradução de CLARA ALLAIN


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