Folha de S. Paulo


Decreto antimigração de Trump gerou confusão entre governo e funcionários

Na última sexta-feira (27), quando o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, assinou um decreto fechando as fronteiras dos EUA a refugiados e pessoas vindas de sete países de maioria muçulmana, o secretário de Segurança Interna, general John F. Kelly, estava em uma teleconferência na Casa Branca, recebendo seu primeiro briefing completo sobre a medida, que marca uma mudança de política global.

Kelly tinha telefonado de um avião da Guarda Costeira a caminho de Miami para Washington. Juntamente com outras autoridades, precisava receber orientações da Casa Branca, que não tinha solicitado de seu departamento uma revisão legal do decreto.

Na metade do briefing, um participante na teleconferência olhou para uma televisão no gabinete do secretário. "O presidente está assinando neste momento o decreto que estamos discutindo", disse o participante, atônito.

A confusão global que explodiu desde então é a história de uma Casa Branca que, sem levar em conta as regras básicas de governança, implementou às pressas uma das principais promessas que Trump fez a seus partidários mais ardentes durante sua campanha. Em sua primeira semana na Presidência, Trump assinou outras ordens executivas sem submetê-las a revisão legal prévia nenhuma ou quase nenhuma, mas seu decreto barrando a entrada de refugiados vem tendo as implicações mais explosivas.

Passageiros foram impedidos de embarcar em voos para os Estados Unidos; funcionários da Alfândega e da imigração receberam instruções às 3h da manhã do sábado, e alguns chegaram a seus postos de trabalho naquela manhã ainda sem saber como cumprir as ordens dadas pelo presidente.

"Os detalhes não foram completamente repassados e discutidos previamente", disse Stephen Heifetz, que serviu nos departamentos de Justiça e Segurança Interna e também na CIA (serviço secreto americano) sob os três presidentes anteriores a Trump. "Não chega a surpreender que tenha havido confusão em massa, e prevejo que o caos e a confusão vão continuar por algum tempo."

Stephen Bannon, o estrategista chefe da Casa Branca, comandou a redação do decreto, realizada por um grupo pequeno de assessores da Casa Branca, incluindo Stephen Miller, diretor de políticas nacionais de Trump. Mas ela foi idealizada mais de um ano atrás, quando o então pré-candidato republicano Trump reagiu ao ataque terrorista em San Bernardino, no Estado da Califórnia, pedindo "o impedimento total e completo da entrada de muçulmanos nos Estados Unidos".

Nos meses seguintes, a campanha de Trump tentou recuar da proposta, vista por democratas como discurso exagerado de campanha, algo que jamais viraria realidade. Com o passar de sua campanha, Trump divulgou poucos detalhes a mais, e, como presidente eleito, prometeu proteger o país contra terroristas, fazendo apenas promessas vagas sobre um processo de exame "extremo" de interessados em entrar no país.

Mas Bannon, que é a favor de uma política imigratória altamente restritiva e considera que impedir a entrada de refugiados é vital para o reforço da base política de Trump, estava determinado a fazer a promessa virar realidade. Ele e um grupo dos assessores mais próximos do presidente começaram a redigir o decreto ainda durante a transição, para que Trump pudesse assiná-lo pouco depois de tomar posse.

Um membro do alto escalão do governo disse que o decreto foi redigido com a cooperação de alguns especialistas em imigração do Capitólio e membros das chamadas "equipes de cabeça de ponte" –grupos de assessores políticos enviados pela nova administração para começar a trabalhar com as diversas agências governamentais e servir de elo com elas.

James Jay Carafano, vice-presidente da conservadora Heritage Foundation e membro da equipe de transição de Trump, disse que os funcionários de carreira do Departamento de Segurança Interna, do Departamento de Estado e outras agências foram informados sobre muito pouco desse trabalho.

Segundo ele, foi erguida "uma barreira entre a administração antiga e a próxima".

Uma razão disso, ele disse, é que, quando a equipe de transição de Trump fazia perguntas pontuais aos funcionários de carreira dando a entender que políticas novas seriam adotadas, as perguntas eram rapidamente vazadas para a imprensa, gerando reportagens negativas. Então a equipe de Trump começou a limitar as informações que compartilhava com funcionários da administração anterior.

"Por que compartilhar com eles?", disse Carafano.

Richard Gil Kerlikowske, que foi comissário de Proteção Alfandegária e de Fronteiras do presidente Barack Obama, disse que sua equipe tinha pouca comunicação com a equipe de transição de Trump, que não mencionou qualquer proibição de entrada de pessoas de determinados países.

Enquanto isso, funcionários da Casa Branca insistiram para jornalistas em um briefing que os assessores de Trump tinham estado em contato com funcionários dos departamentos de Estado e Segurança Interna havia "muitas semanas".

Um funcionário disse: "Todos que precisavam saber foram informados".

Mas, aparentemente, isso não incluiu membros do próprio gabinete do presidente.

O secretário de Defesa, Jim Mattis, não teve acesso a uma versão final do decreto até a manhã da sexta-feira, horas apenas antes de Trump chegar ao Pentágono para assiná-la.

Segundo funcionários da administração com conhecimento das deliberações, Mattis não foi consultado pela Casa Branca durante a preparação do decreto e não teve a oportunidade de opinar quando o decreto foi redigido. Há alguns meses, Mattis criticou fortemente a proibição de imigração muçulmana proposta por Trump, dizendo que era uma iniciativa "que nos está causando grande prejuízo neste momento e gerando ondas de choque em todo o sistema internacional".

No Serviço de Cidadania e Imigração, os funcionários foram instruídos a suspender o processamento de qualquer pedido encaminhado por uma pessoa de qualquer dos países citados na proibição. Segundo as instruções, os candidatos a imigrantes deveriam ser entrevistados, mas seus processos de pedido de cidadania, "green card" ou outros documentos imigratórios deveriam ser suspensos, enquanto se aguardam novas orientações.

O timing do decreto e a falta de aviso prévio deixaram funcionários do Departamento de Segurança Interna "tendo que improvisar" para tentar implementá-lo, segundo um funcionário.

No sábado (28), quando o decreto impediu passageiros em todo o mundo de embarcar em seus voos e quando seus efeitos ficaram claros, Reince Priebus, o chefe de gabinete de Trump, ficou cada vez mais preocupado com o modo como a medida foi implementada e comunicada ao público.

Na manhã do domingo (29), Priebus teve que defender a proibição de imigração no programa "Meet the Press", da emissora NBC, no qual insistiu que o decreto foi lançado de maneira ordeira. Além disso, ele recuou em relação ao decreto e disse que as restrições ao ingresso nos EUA não serão aplicadas "de agora em diante" a residentes permanentes legais no país.

Tradução de CLARA ALLAIN


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