Folha de S. Paulo


Muro de Trump é mais um capítulo na história de divergências com México

Quando um faroeste clássico norte-americano descreve um mexicano, ele usualmente é um salteador ou um preguiçoso. Já no cinema do vizinho ao sul, o "sonho americano" é associado a aproveitadores ou desilusões.

A desconfiança mútua entre as nações remonta ao século 19, e o muro de Donald Trump é só o mais recente capítulo na atribulada relação.

E.B. & E.C. Kellogg/Reprodução
Ilustração da batalha de Chapultepec, em referência ao castelo na Cid. do México bombardeado pelos EUA em 1847
Ilustração da batalha por Chapultepec, castelo na Cidade do México bombardeado pelos EUA em 1847

No começo dos anos 1800, a potência local era a filial do império espanhol baseada no México, como os nomes no mapa da Califórnia atestam.

Em 1821, o México tornou-se independente, com o apoio da nova nação vizinha.

Os problemas começaram no Texas. Em 1835, uma revolta de colonos americanos locais levou à criação de uma república, que acabou anexada aos EUA em 1846, disparando um conflito militar.

Quem levou a pior na Guerra Mexicano-Americana, encerrada em 1848, foram os latinos: 55% de seu território caiu em mãos americanas.

A situação amainou no governo de Porfirio Díaz (1876 a 1910), quando o líder buscou atrair investimentos estrangeiros, ainda que a ele seja atribuída a frase "Pobre México! Tão longe de Deus, tão perto dos Estados Unidos".

Na virada do século 20, americanos dominavam 75% das minas mexicanas, mantendo um nível de investimento que hoje é vital para a economia local —quase 60% dos US$ 30 bilhões estrangeiros que entraram no país em 2015 vieram dos EUA.

O declínio do regime e a década seguinte viram a Revolução Mexicana reabrir as feridas de desconfiança, com os EUA dando e retirando apoio à várias facções rivais. Revolucionários como Pancho Villa viraram modelo de vilões nos filmes do futuro.

O evento central dessa construção de imagem foi a incursão feita pelo general John Pershing em 1916 para prender Villa, que havia atacado vilas americanas. O figurão teve de recuar, humilhado. No México, a imagem do invasor cristalizou-se.

Mario Vazquez/AFP
Muro que avança pelo mar entre as cidades de Tijuana, no México, e San Diego, nos EUA
Muro que avança pelo mar entre as cidades de Tijuana, no México, e San Diego, nos EUA

A estabilização após a revolução levou a uma relativa normalização na relação com os EUA. Mesmo quando Lázaro Cárdenas nacionalizou as empresas estrangeiras de petróleo em 1938, Washington não retaliou.

A partir de 1942, a questão migratória ganhou relevância como o Programa Braceros, que trouxe trabalhadores mexicanos para ajudar a suprir mão-de-obra durante a Segunda Guerra e depois.

Encerrado em 1964, ele indiretamente estimulou o influxo de imigrantes ilegais que acabaria sendo denunciado em 1985 pelo presidente Ronald Reagan como "uma invasão" —o número subira de 87 mil para quase 4 milhões anuais no período.

As drogas são outro problema. A violência dos cartéis mexicanos disputando o mercado americano aumenta a pressão migratória.

A fusão cultural, a despeito das diferenças, seguiu curso irrefreável. Híbridos como a língua de rua "espanglês" e a culinária "tex-mex" (que insistem em chamar de mexicana no Brasil) são prova disso. A maioria dos estrangeiros nos EUA é mexicana.

A dinâmica é vista em Hollywood, com o sucesso de diretores como o oscarizado Alejandro Iñárritu ("O Regresso"), e na evolução da descrição no cinema mexicano dos imigrantes: antes eram traidores da pátria em fuga, e a partir de "Os Esquecidos" (Luís Buñuel, 1950) ganharam status de heróis oprimidos. O muro tem tudo para estrelar novas produções.


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