Folha de S. Paulo


Análise

Exaustão do multilateralismo incentiva protecionismo

Ao cometer a excentricidade de cumprir uma promessa de campanha, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, já está sendo pintado como o coveiro do sistema de livre comércio mundial por ter inviabilizado a Parceria Transpacífico (TPP, na sigla em inglês).

Assim como na crítica dura à Otan (aliança militar ocidental bancada pelos EUA), que qualificou corretamente de obsoleta, o problema maior é Trump: um tosco sem limites que causa ojeriza à audiência qualificada. Mas o fato é que o movimento contrário ao TPP não é exatamente alienígena.

Saul Loeb - 23.jan.2017/AFP
TOPSHOT - US President Donald Trump holds up an executive order withdrawing the US from the Trans-Pacific Partnership after signing it in the Oval Office of the White House in Washington, DC, January 23, 2017. Trump the decree Monday that effectively ends US participation in a sweeping trans-Pacific free trade agreement negotiated under former president Barack Obama. / AFP PHOTO / SAUL LOEB ORG XMIT: SAL001
Donald Trump exibe no Salão Oval ordem executiva que retira os EUA do TPP

Há hoje, assim como no campo político, um sentimento de exaustão em relação ao multilateralismo que criou Leviatãs burocráticos no comércio. Tanto é assim que Trump de um lado despreza o TPP, mas por outro acena com acordos bilaterais que tendem a respeitar mais os interesses de lado a lado.

Isso decorre, em parte, do fracasso na crença da expansão infinita de mecanismos globais de troca, que atingiu seu apogeu após muito vaivém histórico.

O primeiro acordo de livre comércio dos tempos modernos, o tratado de Cobden-Chevalier, foi assinado em 1860 primariamente para evitar uma guerra entre França e Reino Unido. Gerou uma onda similar, com seis dezenas de acertos similares na Europa nos anos seguintes, todos bilaterais.

A globalização de então, vista como inevitável no âmbito europeu e descrita como a coleira final do militarismo no clássico "A Grande Ilusão" (Norman Angell, 1910), desmoronou com a Primeira Guerra (1914-18) e a emergência do fascismo e do comunismo.

Aos poucos, em especial com o impulso destrutivo da Segunda Guerra, instituições multilaterais se organizaram na política e na economia.

No comércio, em 1947 foi estabelecido o GATT (Acordo Geral de Tarifas e Comércio) e suas famosas rodadas de negociação. A coisa cresceu exponencialmente, culminando na criação da OMC (Organização Mundial do Comércio) em 1995, que tornou-se mais um tribunal contra protecionismos acionado com frequência em disputas políticas.

Como as rodadas do GATT levavam a becos sem saída, surgiram acordos regionais mais ou menos amplos, muitos inspirados no modelo que gestou a União Europeia, embora sem o componente de união política –caso do Mercosul, do Nafta (acordo que compreende EUA, Canadá e México), das iniciativas chinesas e do próprio TPP.

Como todo negociador brasileiro que já teve de discutir tarifas com um contraparte argentino sabe, a missão dessas instituições é inglória. Mesmo o caso europeu, tão admirado, está em plena crise, como o "brexit" e a ascensão dos nacionalismos continentais demonstram.

Mesmo na Europa sobram exemplos de protecionismo virulento em nações avançadas, como a França. O governo indiano, presidindo sobre um suculento mercado, está em plena campanha pela compra do "Made in India". A comemoração discreta do Itamaraty pela debacle do TPP não passa despercebida. O slogan "America First" (América em primeiro lugar), repetido por Trump em sua posse, está longe de ser uma novidade.

O embate entre realidade econômica e discurso político não é novo. O Nafta, por exemplo, foi combatido por muitos mexicanos como uma entrega de soberania. Duas décadas depois, é o motor do crescimento do país. Agora que Trump pressiona por revê-lo, não se espera comemoração nacionalista ao sul de sua fronteira.

No caso do TPP, mesmo para Trump a situação é desconfortável pela possibilidade de que a China abocanhe espólios da aliança e amplie sua influência –para o ex-presidente Barack Obama, o sentido da parceria era mais político do que econômico, aliás. Ofertas de acertos bilaterais cirúrgicos, para parceiros estratégicos, poderão ser uma saída.

A decisão do presidente americano parece fazer parte de uma onda maior e cíclica, mas cujo catastrofismo anunciado, se confirmado, pode ser mais debitado na conta da mensagem do que na do mensageiro.


Endereço da página:

Links no texto: