Folha de S. Paulo


Entenda como dossiê chocante e não confirmado gerou crise para Trump

Sete meses atrás um respeitado ex-espião britânico chamado Christopher Steele firmou um contrato para montar um dossiê sobre os vínculos do presidente eleito dos Estados Unidos, Donald Trump, com a Rússia. Na semana passada, os detalhes explosivos do dossiê –relatos não confirmados de farras com prostitutas, negócios imobiliários oferecidos para funcionar como propinas, e a coordenação com a inteligência russa do grampeamento de membros do Partido Democrata– foram resumidos para Trump em um apêndice a um relatório de inteligência ultrassecreto.

As consequências estão sendo incalculáveis e serão sentidas por muito tempo após a posse de Trump como presidente, programada para 20 de janeiro. A notícia sobre o resumo, que também foi entregue ao presidente Barack Obama e a líderes do Congresso, vazou para a CNN na terça-feira (10), e o restante da mídia seguiu a emissora, publicando reportagens sensacionalistas.

Lucas Jackson - 11.jan.2017/Reuters
Donald Trump faz sua primeira entrevista para a imprensa como presidente eleito, na cidade de Nova York (EUA), nesta quarta-feira
Donald Trump em entrevista coletiva em Nova York nesta quarta-feira (11)

Na quarta-feira (11) Trump denunciou as alegações não confirmadas como sendo mentiras, uma calúnia em estilo nazista que teria sido arquitetada por "pessoas doentes". Isso prejudicou ainda mais seu relacionamento com as agências de inteligência e lançou uma sombra sobre a nova administração.

No final da noite de quarta-feira, depois de conversar com Trump, o diretor de inteligência nacional, James R. Clapper Jr., divulgou comunicado criticando os vazamentos sobre o assunto e dizendo a respeito do dossiê compilado por Steele que as agências de inteligência "não fizeram qualquer julgamento quanto a se as informações contidas no documento são dignas de crédito". Clapper sugeriu que as autoridades de inteligência haviam compartilhado o dossiê, mesmo assim, para dar aos responsáveis políticos do país "o quadro mais completo possível sobre quaisquer assuntos que possam afetar a segurança nacional".

Ainda não é possível confirmar partes da história –mais criticamente, a questão fundamental de quanto do dossiê corresponde à verdade, se é que alguma parte dele o faz. Mas é possível traçar uma narrativa aproximada do que levou à crise atual, incluindo dúvidas persistentes sobre os laços que unem Trump e sua equipe à Rússia. O episódio também proporciona um vislumbre do lado oculto das campanhas presidenciais, envolvendo investigadores particulares contratados para procurar o que há de mais desairoso a ser descoberto sobre o próximo líder americano.

A história começou em setembro de 2015, quando um doador republicano rico que era fortemente contrário a Trump pagou pela contratação de uma firma de investigações de Washington dirigida por antigos jornalistas, a Fusion GPS, para compilar um dossiê sobre os escândalos e pontos fracos passados do magnata imobiliário, segundo revelou uma pessoa que tem conhecimento desse esforço. A pessoa exigiu anonimato para descrever o trabalho de investigação oposicionista, citando a natureza volátil dos fatos e a probabilidade de contestações legais futuras. A identidade do doador não está clara.

Comandada por Glenn Simpson, ex-jornalista do "the Wall Street Journal" conhecido por seu trabalho de reportagem investigativa insistente, a Fusion GPS geralmente trabalha para clientes corporativos. Mas, em eleições presidenciais, a firma às vezes é contratada por candidatos, organizações partidárias ou doadores para fazer trabalho de investigação oposicionista política.

É um trabalho rotineiro, que normalmente envolve a criação de um grande banco de dados de informações públicas: reportagens passadas publicadas na mídia, documentos relativos a processos na Justiça e outros dados que venham ao caso. A Fusion GPS passou meses reunindo os documentos e juntou os arquivos relativos ao passado de Trump nos setores de negócios e entretenimento, um alvo fértil.

Quando Trump emergiu como o provável candidato presidencial republicano, na primavera americana passada, o interesse republicano em financiar a investigação acabou. Mas partidários democratas de Hillary Clinton estavam muito interessados, e a Fusion GPS continuou a fazer a mesma investigação profunda, só que em prol de novos clientes.

Em junho do ano passado o sentido do esforço mudou de repente. O "Washington Post" divulgou que o Comitê Nacional Democrata tinha sido grampeado, aparentemente por agentes do governo russo, e uma figura misteriosa que se identificava como "Guccifer 2.0" começou a divulgar os documentos roubados online.

Glenn Simpson contratou Christopher Steele, ex-oficial da inteligência britânica com quem já trabalhara no passado. Steele, que tem pouco mais de 50 anos, tinha sido espião britânico em Moscou no início dos anos 1990 e mais tarde foi o especialista chefe sobre a Rússia na sede londrina do MI6, serviço de espionagem britânico. Em 2009, quando se aposentou do MI6, Steele fundou sua própria firma comercial de coleta de informações, a Orbis Business Intelligence.

O ex-jornalista e o ex-espião, segundo pessoas que os conhecem, tinham uma visão igualmente negativa do presidente russo, Vladimir Putin, ex-oficial da KGB (serviço secreto soviético), e das táticas diversas empregadas por ele e seus agentes de inteligência para difamar, chantagear ou subornar seus alvos.

Sendo um antigo espião que tinha feito espionagem na Rússia, Steele não podia viajar a Moscou para estudar os vínculos de Trump na Rússia. Em vez disso, ele contratou pessoas que falavam o russo como língua materna para telefonar a informantes na Rússia e também consultar discretamente seus próprios contatos nesse país.

Steele tomou nota do que descobriu em uma série de memorandos, cada um de algumas páginas de comprimento, que ele começou a entregar à Fusion GPS em junho e continuou pelo menos até dezembro. Nesse momento a eleição já terminara, e nem Steele nem Simpson continuavam a ser pagos por qualquer cliente, mas os dois não interromperam seu trabalho, que acreditavam ser de suma importância (Simpson se negou a dar declarações para este artigo, enquanto Steele não respondeu imediatamente a um pedido de declarações).

Os memorandos descreveram duas operações russas distintas. A primeira foi um esforço empreendido durante anos para encontrar uma maneira de influenciar Donald Trump, possivelmente porque ele tinha contatos com oligarcas russos cuja atividade Putin queria rastrear. De acordo com os memorandos de Steele, a Rússia lançou mão de uma gama de táticas já conhecidas: a coleta de "kompromat", ou materiais comprometedores, como supostos vídeos de Trump com prostitutas em um hotel de Moscou, e propostas de negócios comerciais atraentes para Trump.

O objetivo provavelmente nunca foi converter Trump em agente russo ciente de que o era, mas fazer dele uma fonte que pudesse fornecer informações a contatos russos amigos. Mas, se Putin e seus agentes quiseram envolver Trump usando negócios comerciais para isso, não foram muito bem-sucedidos: Trump disse que não possui grandes bens nesse país, se bem que um de seus filhos tenha dito em uma conferência do setor imobiliário em 2008 que "muito dinheiro está entrando da Rússia".

A segunda operação russa descrita foi recente: uma série de contatos com representantes de Trump durante a campanha presidencial, em parte para discutir o grampeamento do Comitê Nacional Democrata e do diretor da campanha de Hillary Clinton, John D. Podesta. De acordo com as fontes de Steele, essa operação envolveu, entre outras coisas, um encontro que teria acontecido em Praga no final do verão europeu entre Michael Cohen, um advogado de Trump, e Oleg Solodukhin, funcionário governamental russo que trabalha na Rossotrudnichestvo, organização que promove os interesses da Rússia no exterior.

Segundo muitas fontes, Steele tem ótima reputação entre seus colegas de inteligência americanos e britânicos e trabalhou para o FBI (polícia federal americana) na investigação sobre corrupção na Fifa, o órgão que governa o futebol mundial. Colegas disseram que ele tinha consciência aguda do perigo de ele e seus contatos estarem recebendo desinformação russa intencional. A inteligência russa tinha montado uma operação complexa de grampeamento para prejudicar Hillary Clinton, e uma operação semelhante contra Trump era possível.

Mas muito do que foi dito a Steele e que ele repassou à Fusion GPS foi muito difícil de corroborar. E algumas das alegações que podem ser verificadas parecem ser problemáticas. Cohen, por exemplo, disse no Twitter na noite de terça-feira que nunca foi a Praga; em entrevista telefônica, Solodukhin, seu suposto contato russo, negou que já tenha estado com Cohen ou qualquer pessoa ligada a Trump. Na quarta-feira o presidente eleito citou relatos da mídia segundo os quais um Michael Cohen diferente, sem vínculos com Trump, pode ter ido a Praga, e que os relatórios de Steele podem ter feito confusão entre os dois Cohen.

Mas a notícia sobre o dossiê tinha começado a se espalhar pelos círculos políticos. Rick Wilson, agente político republicano que trabalhava para um comitê de ação política que apoiava Marco Rubio, contou que ouviu falar da existência do dossiê em julho, quando um repórter investigativo de uma grande emissora de TV lhe telefonou para perguntar o que ele sabia.

Há alguns meses, alguns dos memorandos de Steele foram entregues ao FBI, que já estava investigando os vínculos de Trump com a Rússia, e a jornalistas. Um oficial do MI6, cujo cargo não permite que ele seja identificado por seu nome, disse que algum tempo antes Steele também havia entregado à inteligência britânica os relatórios que preparara sobre Trump e a Rússia. Steele achou preocupante o que estava ouvindo sobre Trump e achou que a informação não deveria ser entregue apenas a pessoas cujo objetivo era vencer uma disputa política.

Agora, após a mais polarizada de todas as eleições, os americanos estão divididos e confusos sobre o que acreditar em relação ao próximo presidente. E não há perspectiva no futuro previsível de saber se as acusações feitas contra ele são verídicas ou não.

"Vivemos um momento espantoso da história", comentou Rick Wilson, o agente político da Flórida. "Em que mundo eu acordei?"

Tradução de CLARA ALLAIN


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