Folha de S. Paulo


Contrabando de combatentes do EI vira atividade lucrativa na Síria

No mundo torpe da economia de guerra na Síria, a facção radical Estado Islâmico (EI) tem sido um dos principais condutores do tráfico de pessoas durante os quase seis anos de guerra civil. Primeiro foi o maior comprador. Agora, seus combatentes são um dos artigos mais valorizados.

Os combatentes do EI se tornaram um dos alvos mais lucrativos para contrabandistas, incluindo facções armadas por potências estrangeiras como os EUA e a Turquia.

"Toda facção negocia combatentes do EI. Não acredite em ninguém que diga que não faz isso", diz Abu Yazan, que, como a maioria dos rebeldes entrevistados, não usou seu nome verdadeiro. Combatente no norte da Síria para o grupo rebelde Jabha Shamiya, que foi apoiado por Washington e Ancara, ele enviou militantes do EI dos territórios do grupo para áreas rebeldes.

No auge do poder do EI, em 2013 e 2014, o grupo terrorista dominou o tráfico. Criminosos e algumas facções vendiam reféns, especialmente jornalistas e socorristas, aos militantes. O EI teria conseguido milhões de dólares em resgates por reféns europeus, e assassinou outros em vídeos macabros que lhe deram notoriedade mundial.

Mas conforme o EI perde território para forças internacionais e locais em suas bases que restam no Iraque e na Síria, seus militantes tornaram-se um prêmio no mercado negro.

Combatentes do EI capturados ou desertores podem gerar lucro de várias maneiras. A mais comum é que um desertor pague a uma combinação de rebeldes e contrabandistas para organizar sua fuga do território do EI.

A oportunidade mais lucrativa é capturar um combatente estrangeiro do EI cujo governo o queira de volta e aceite pagar pelo militante. Os rebeldes dizem que os países do Golfo são geralmente os mais inclinados, às vezes pagando milhões de dólares.

Um nome comumente levantado nessas transações é o de Abu Ali Seiju, um líder do Jabha Shamiya que, segundo os rebeldes, ganhou milhões no controle da passagem de fronteira de Bab Al-Salama, entre a Síria e a Turquia.

Ele diz que devolveu militantes sauditas a Riad por meio de autoridades turcas, de graça. Outros líderes rebeldes, porém, insistem que ele recebeu grandes somas pela entrega.

Em um restaurante popular na cidade turca de Gaziantep, Seiju fuma um narguilé e percorre vários iPhones para tirar arquivos que preparou sobre cerca de cem combatentes do EI que ele detém em cativeiro.

"Tenho homens do Paquistão, da Ucrânia... tínhamos uma francesa", diz ele. Seiju insiste que oferece para devolver os cativos estrangeiros a seus governos, mas nunca recebe dinheiro. "A verdade é que geralmente esses governos não os querem", diz. "Eu lhes digo que tenho um certo grupo de pessoas e eles dizem que só querem este ou aquele sujeito."

A maioria dos rebeldes diz que os contrabandistas cobram de alguns milhares de dólares até US$ 10 mil (R$ 32 mil) só para atravessar de uma área do EI até território rebelde. Pode custar mais US$ 10.000 para entrar na Turquia, dizem eles.

"Antes eram só os contrabandistas que faziam isso, mas os rebeldes viram o que estava acontecendo e pensaram: 'Por que não devemos lucrar? Somos nós que controlamos este território'. Então virou uma competição", diz Yazan.

Outra figura rebelde que esteve envolvida nesse comércio diz: "Os países informam a Turquia, que escolhe a pessoa da facção. Há países que pagam por isso. O que você pode ganhar [por um combatente estrangeiro] sempre depende, mas geralmente é menos de US$ 50 mil (R$ 160 mil)."

Seiju afirma que lhe ofereceram um bom dinheiro por dois prisioneiros dos Emirados Árabes com cidadania americana.

"Eles queriam me pagar US$ 10 mil. Eu recusei... foi através de mediadores e eu não quis mexer com isso. Finalmente os entreguei aos Emirados sem ganhar nada, porque foram enviados diretamente ao país", diz ele.

NYT/Editoria de Arte/Folhapress
ORIGEM E AVANÇOS DO Estado Islâmico (620 pxl)Ataque em Paris levanta suspeita de‘internacionalização’ do grupoTERRITÓRIOS DOMINADOS NO IRAQUE E NA SÍRIA

Outros rebeldes dizem que ele esperou para conseguir um preço maior, ou manteve os prisioneiros por mais tempo por oferta de outro país.

A troca de prisioneiros do EI nem sempre é uma questão de dinheiro. Também pode se relacionar a alavancagem política e ganhos estratégicos –um reino ainda mais nebuloso no negócio de reféns do EI.

"Você pode manter um prisioneiro por informação", diz outra figura da oposição síria na Turquia. "Assim você mostra a uma agência de inteligência estrangeira que você tem informação, que é valioso para eles."

Além dessas transações, trocas quase diárias ocorrem entre os rebeldes, diz um combatente do grupo Ahrar al-Sharqiya, que participa da ofensiva para recapturar a cidade de al-Bab, em poder do EI. Ele descreve um caso recente em que um de seus camaradas foi capturado pelos jihadistas e os rebeldes o conseguiram de volta por meio de uma complexa troca de prisioneiros. O EI queria um prisioneiro que estava com outra facção rebelde, que no início pedia que os combatentes do Ahrar lhe dessem em troca um refém melhor.

"Acabamos pagando em dinheiro pelo prisioneiro. Nós o compramos", diz ele. "Todo mundo vende."

Os rebeldes afirmam que mais da metade dos desertores do EI querem ir à província de Idlib, na Síria, para unir-se a outros grupos radicais que têm ligações com a Al Qaeda, sugerindo que não abandonaram sua ideologia extremista.

Muitos comandantes rebeldes e contrabandistas poderosos mantêm uma distância entre eles e as transações. É assim que soldados comuns nas linhas de frente como Yazan, no norte da Síria, acabam envolvidos nos negócios.

Ele diz que recentemente levou uma família de desertores da Ásia central do último ponto de controle do EI nessa área até um veículo de propriedade de um grupo rebelde. O comandante rebelde e principal contrabandista recebeu cerca de US$ 12 mil (R$ 38 mil), diz ele.

"Eu caminhei um quilômetro com aquela família e os coloquei em um carro.... É uma distância irrisória –uma farsa", diz ele.

"Isso o faz perceber que é uma coisa errada. Isto não é normal. Eles não quiseram aparecer na foto."

Traduzido por LUIZ ROBERTO CONÇALVES


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