Folha de S. Paulo


Venezuelanos usam rota paralela para comprar comida no Brasil

Aposentado, João Pereira de Oliveira, 64, comprou há um ano um terreno para construir sua casa e descansar. Tudo ia bem na pacata vida, até que o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, determinou o fechamento da fronteira entre seu país e o Brasil.

A propriedade do aposentado fica exatamente na fronteira entre os dois países e tornou-se uma rota paralela usada por venezuelanos para entrar ilegalmente no Brasil para comprar alimentos e trazer gasolina para vender em Pacaraima (RR).

Bruno Santos/Folhapress
O aposentado João Pereira de Oliveira, 64, que mora na fronteira do Brasil com a Venezuela

A cidade, que não tem postos de combustíveis, foi afetada economicamente pelo fechamento da fronteira.

Maduro alegou que tomou essa decisão para evitar que notas de 100 bolívares (que valem de R$ 0,06 a R$ 0,14, dependendo do câmbio) fossem contrabandeadas por máfias colombianas e brasileiras, apoiadas pelo Departamento de Estado dos EUA para desestabilizar a Venezuela.

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Cambista troca bolívares na região fronteiriça; Maduro diz que máfias tentam contrabandear moeda

Ao menos cem pessoas, a pé ou em motocicletas, fazem diariamente o trajeto entre Santa Elena de Uairén, na Venezuela, e o Brasil por meio da propriedade de Oliveira, que fica a cem metros de uma casa de veraneio da governadora Suely Campos (PP).

"Não tenho opção, preciso comprar arroz, açúcar e óleo. Se não passar aqui, não terei o que comer", disse Carlo Alandi, um dos que fazem a travessia ilegal, de moto.

Durante meia hora, na última quinta (29), a Folha flagrou ao menos dez motos com dois ocupantes cada e seis pedestres usando a casa para a travessia. Dois dias antes, camionetes entraram ilegalmente no Brasil por outro ponto.

Há, além da casa de Oliveira, ao menos outros sete pontos na área urbana de Pacaraima usados para a travessia clandestina, que dura 15 minutos, caso seja feita de moto e as condições do trajeto estejam favoráveis.

"Não há o que fazer, não dá para impedir. Mas, além disso, é uma questão de solidariedade. Estão com muita fome, a gente vê pelo que transportam nas motos. Não dá para proibir ninguém de querer comer", diz o aposentado.

Há uma faixa de 30 metros sem construções entre a casa e os marcos divisórios, exigência legal, o que facilita a ação dos motociclistas.

Até um trecho pantanoso foi usado por venezuelanos, com a orientação de nativos, que chegaram a cobrar R$ 20 para indicar a melhor rota.

Óleo de cozinha, açúcar, creme dental, arroz e maionese são os itens mais transportados tanto nas rotas clandestinas como na fronteira oficial entre os países, aberta para pedestres até as 20h. Veículos brasileiros não entram no país vizinho, mas alguns carros venezuelanos cruzaram a fronteira rumo ao Brasil.

A travessia é favorecida pela fiscalização quase inexistente. A Folha foi à unidade da Polícia Federal, mas não encontrou nenhum agente –tinham saído em missão, segundo um vigilante. Nas fronteiras, nenhum sinal de repressão foi identificado.

"Tenho casa na Venezuela, mas vim para cá viver na miséria. Melhor isso do que morrer de fome. Em janeiro virá mais gente, pois Santa Elena está perigosa e lá já não há o que fazer ou o que comer", diz Giancarlo Ramirez, que está no país com mulher e filhos e tem vivido nos fundos de uma entidade que emprestou o espaço para três famílias.

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Pessoas fazem travessia ilegal da Venezuela para o Brasil

Reflexo do fechamento da fronteira, o comércio em Pacaraima viu o movimento cair 90% na última semana, segundo o empresário Juliano Torquato (PRB), novo prefeito da cidade.

Até o início de dezembro, o trânsito ficava congestionado na principal rua do comércio devido às dezenas de veículos que eram abastecidos de mantimentos para voltar à Venezuela. Na última semana, só se viu um ou outro carro, em meio a pedestres.

"Já era difícil abastecer a Venezuela, mas, agora, com o fechamento, o que levam é insuficiente", afirma Torquato. O baixo movimento fez com que o comércio deixasse de aceitar bolívares.

A imigração em massa de venezuelanos foi parar na Justiça, que determinou que o governo do Estado e a Prefeitura de Boa Vista adotassem medidas para retirar as crianças das ruas e abrigá-las. Elas compõem grande parte dos estimados 30 mil venezuelanos que chegaram ao Estado nos últimos meses.

Após a decisão, começou a funcionar em Boa Vista na quarta (28) um abrigo humanitário, que atendeu nos dois primeiros dias 300 venezuelanos, a maioria indígenas da etnia Warao. "Não quero morrer, só voltarei se tiver comida na Venezuela", disse Rosaura Sanchez, 45, uma das abrigadas.

A PF informou, por meio de nota, que o fechamento da fronteira causou redução significativa nos atendimentos em Pacaraima e que a unidade na cidade é passagem obrigatória a estrangeiros que desejem entrar ou sair do país.

A nota, assinada pelo delegado Alan Robson Alexandrino Ramos, diz ainda que o contrabando de combustível é investigado em inquéritos policiais e que ações ostensivas resultaram em prisões.

Gasolina, aliás, é o produto mais apreendido na fronteira, segundo ele.

Já a Receita Federal informou, via assessoria, que a entrada ou saída de mercadorias do país fora de pontos alfandegados caracteriza, em tese, crime de contrabando ou descaminho. Para combater isso, o órgão disse desenvolver ações regulares de vigilância e repressão.

"QUEIJO SUÍÇO" NA FRONTEIRA ENTRE VENEZUELA E BRASIL

Fechamento
A Venezuela fechou a fronteira no dia 13, sob a alegação de combater "máfias" que entram no país com notas de 100 bolívares

Prazo
Previsto para durar 72 horas, o fechamento foi prorrogado até segunda-feira (2)

Fronteira
Embora haja uma estrada para ligar Brasil e Venezuela, caminhos alternativos foram ampliados e motoristas chegam a passar de carro por rotas em meio ao mato

Fiscalização
Há do lado brasileiro órgãos como Polícia Rodoviária Federal, Polícia Federal, Receita Federal, Anvisa e Ministério da Agricultura, que fiscalizam a entrada de pessoas e cargas no país

Pedestres
A passagem foi liberada durante o dia, mas apenas para pedestres, que têm de caminhar mais de 1 km para passar pela aduana


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