Folha de S. Paulo


Para ex-embaixador dos EUA, América Latina não toleraria recuo sobre Cuba

Pedro Ladeira/Folhapress
O subsecretário de Estado dos EUA para Assuntos Políticos, Thomas Shannon, em Brasília
O subsecretário de Estado dos EUA para Assuntos Políticos, Thomas Shannon, em Brasília

O presidente eleito dos Estados Unidos, Donald Trump, ameaça revogar os decretos de Barack Obama que possibilitaram a reaproximação entre os americanos e Cuba.

Mas a normalização entre os países é vista como "necessária e importante" por nações da região, alerta o subsecretário de Estado dos EUA para Assuntos Políticos, Thomas Shannon.

"Os países na América Latina são alérgicos a exclusão; eles se sentiriam muito desconfortáveis se pensassem que estamos no processo de excluir Cuba", disse à Folha Shannon, que é o mais alto funcionário de carreira (não indicado político) do Departamento de Estado e, como tal, deve ficar durante a transição para o governo Trump e, eventualmente, no próximo governo, caso requisitado.

Enviado várias vezes por Obama a Caracas para ajudar a mediar a crise na Venezuela, Shannon elogiou a atuação mais assertiva do Brasil em relação ao país e a decisão de suspendê-lo do Mercosul.

"Há uma mudança de postura do Brasil em relação à Venezuela, mas é uma postura bastante madura e comedida", afirmou.

Três anos e meio depois de deixar o Brasil em meio à uma das piores crises entre o país e os EUA —o escândalo da espionagem da NSA—, Shannon veio a Brasília e foi recebido pelo presidente Michel Temer e ganhou almoço do chanceler José Serra.

Indagado sobre a atual instabilidade política no Brasil, Shannon afirmou: "Vemos os desafios que o presidente Temer está enfrentando, e admiramos o que ele tem conseguido implementar por meio do Congresso, ao fazer avançar importantes e necessárias reformas fiscais enquanto trabalha para abordar as consequências da Lava Jato".

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Folha - Tanto o governo venezuelano quanto a oposição criticam a atual negociação sendo mediada pelo Vaticano. O sr. vê futuro?

Thomas Shannon - Acredito que há um futuro para a negociação, mas depende totalmente dos venezuelanos, após a comunidade internacional ter feito um esforço notável para criar um ambiente em que governo e oposição podem dialogar. Em uma das conversas que tive na Venezuela, um político me disse que o país precisa decidir se quer reconciliação ou ruptura. Espero que os venezuelanos decidam que podem viver juntos. Mas o futuro da negociação depende muito mais do governo do que da oposição, porque a única saída para esse conflito é através de eleições.

É imperativo que o governo estabeleça um calendário eleitoral.
A Venezuela espera pelas datas de suas eleições para governador, prefeito, tem uma data para eleição presidencial e espera uma para o referendo revogatório, se o povo optar por fazer isso. Há hoje na Venezuela um deserto eleitoral. O Conselho Nacional Eleitoral (CNE) faz de tudo, menos marcar eleições. Marcar eleições e deixar o povo venezuelano saber que será consultado são parte necessária de qualquer solução para a crise.

O Brasil tem sido um crítico contumaz do governo venezuelano, e a Venezuela foi suspensa do Mercosul. Isso ajuda a resolver a crise no país ou é contraproducente?

Essas são consequências naturais de tudo o que está acontecendo na Venezuela e são mensagens claras do Brasil e outros países da região. O Brasil tem feito uma abordagem muito comedida e inteligente aos acontecimentos na Venezuela. O apoio brasileiro às resoluções da OEA e as declarações do governo brasileiro representam uma mudança significativa.

Mas essa mudança foi provocada pela gravidade da situação na Venezuela e pela preocupação com os possíveis impactos da crise na região. Há uma mudança de postura do Brasil em relação à Venezuela, mas é uma postura bastante madura e comedida.

Alguns críticos apontam que a diplomacia brasileira acabou cortando os canais de comunicação que tinha com o governo venezuelano.

Ah, mas esses canais funcionaram tão bem antes... Eu entendo esse argumento, afinal, sou um diplomata. Todos nós queremos manter comunicações e assegurar um grau de influência. Mas ao mesmo tempo que temos esses interesses, temos valores. Em que medida você mantém sua influência e consegue fazer alguma coisa ao ficar quieto?

OEA, Unasul e Mercosul determinam que haverá consequências para mau comportamento, e a suspensão do Mercosul é resultado da decisão da Venezuela de não cumprir exigências que eram muito claras.

Mas outros países do Mercosul tampouco cumpriram todas as exigências e continuam no bloco. Não há um componente político na suspensão?

Da mesma maneira que houve um componente político na entrada da Venezuela no Mercosul.

Estive em Washington no mês passado, e pessoas do setor privado e do governo Obama me disseram estar preocupadas com a instabilidade no Brasil. Como o sr. vê a situação política no país?

Eu não estou aqui para intervir nos assuntos brasileiros, mas sim para facilitar a relação entre Brasil e EUA. Tenho tremenda confiança nas instituições, na democracia e no povo do Brasil. No momento, vemos uma narrativa positiva que ressalta a eficácia das instituições brasileiras e do Estado de Direito.

Vemos os desafios que o presidente Temer está enfrentando, e admiramos o que ele tem conseguido implementar por meio do Congresso, ao fazer avançar importantes e necessárias reformas fiscais enquanto trabalha para abordar as consequências da Lava Jato.

O sr. foi embaixador no Brasil. Foi embora em setembro de 2013, no meio do escândalo de espionagem da NSA, que levou a presidente Dilma a cancelar sua viagem para Washington. O sr. pode contar um pouco de como foi aquele momento?

Foi complicado, no mínimo. Eu me senti mal de deixar Liliana [Ayalde, embaixadora que o sucedeu no posto] com esse "abacaxi". Mas vale notar como nós conseguimos manter o diálogo e o engajamento, mesmo sendo doloroso e complicado. Mantivemos uma colaboração muito importante em segurança relacionada à Copa do Mundo e à Olimpíada.

Muita gente está preocupada com a possibilidade de uma guinada protecionista no governo Trump. Há motivos para preocupação?

Bom, em primeiro lugar, temos um governo de cada vez. Então, até 20 de janeiro, este é o governo de Barack Obama. Mas estou confiante nesta transição, na habilidade do presidente eleito para definir as políticas que ele quer implementar. Não quero prever quais serão essas políticas. Mas não há dúvidas de que comércio e globalização foram fator importante da campanha. Certamente ele irá abordar alguns desses aspectos, ele já mencionou a TPP [Parceria Transpacífico].

Em relação ao Brasil, há motivos para ficarmos otimistas. Temos uma relação econômica equilibrada e um superavit comercial com o Brasil. Há um volume significativo de investimento brasileiro nos EUA. Em um ambiente que pode ser crescentemente transacional, o Brasil está bem posicionado.

O presidente eleito afirmou que as concessões que Obama fez ao governo cubano foram através de decretos presidenciais, e que ele irá revertê-los, a não ser que o regime cubano cumpra exigências. Trump pode anular a aproximação entre os dois países ao revogar decretos de Obama?

Como presidente, ele tem autoridade para isso. Mas não quero prever o que ele irá fazer. O máximo que posso dizer é que, nas viagens que venho fazendo à região, todos os países afirmam que a normalização entre os dois países é necessária e importante, apesar de eles não terem muita simpatia pelo regime cubano.

Os países na América Latina têm uma vocação para o diálogo e são alérgicos a exclusão; eles se sentiriam muito desconfortáveis se pensassem que estamos no processo de excluir Cuba.

Como o sr. está ajudando na transição do governo nos Estados Unidos?

[Donald Trump] será meu sexto presidente, servi a três republicanos e dois democratas. Minha função é garantir que haverá continuidade na burocracia e que o departamento irá responder imediatamente à nova liderança.

Para alguns, se o presidente Obama tivesse agido de forma mais assertiva na guerra da Síria, o conflito talvez não fosse tão sangrento...

O que prolongou e tornou esse conflito tão sangrento não foi a decisão do presidente Obama de não intervir, mas sim a decisão dos russos e dos iranianos de intervir.


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