Folha de S. Paulo


Ex-extremistas dos EUA ajudam na reabilitação de racistas arrependidos

Anna Virginia Balloussier/Folhapress
O ítaloamericano Christian Picciolini, 43, é cofundador do Life After Hate, grupo que faz uma
O ítaloamericano Christian Picciolini, 43, é cofundador do Life After Hate, grupo que faz uma "rehab" com supremacistas arrependidos

Tony McAleer, 49, cresceu entre um pai que o submetia a abuso emocional e um colégio católico onde castigo corporal era a norma. Virou recrutador de skinheads.

Antes de se tornar neonazi, Christian Picciolini, 43, era o filho de imigrantes que sofria bullying. Ele ainda lembra do valentão que lhe acertava a cabeça com uvas congeladas e lhe dizia coisas do tipo: "Depois da aula, seu brocha, vou chutar sua bunda italiana nojenta daqui até o gueto, que é o seu lugar".

Filha de evangélico e católica, Angela King, 49, não se sentia à vontade nem em casa nem na igreja. Juntou-se a grupos como Nação Ariana. Em 1998, sua turma assaltou uma locadora e espancou o dono, judeu. Na prisão, ela entendeu que era gay.

Essas são algumas das cabeças que coordenam o Life After Hate (vida após o ódio), grupo baseado em Chicago que auxilia pessoas como as que seus diretores já foram um dia: ex-extremistas que querem distância de movimentos de ódio. Um misto de "rehab" e "suicide hotline" (linha para assistência a suicidas) para racistas arrependidos, afirma Picciolini.

Criado em 2009, o Life After Hate ajudou cerca de cem pessoas. Um dos programas, Exit USA, adotou o mote "sem julgamento, apenas ajuda".

A abordagem é cuidadosa: a pessoa que procura socorro pode usar pseudônimos e dar instruções sobre a melhor forma de ser contatado.

Uma das "terapias", segundo Picciolini: "Levo a pessoa para conhecer quem ela costumava odiar. Muçulmano? Vamos lá bater um papo com o imã da mesquita. Judeu? Então uma sinagoga. Para perceber que são pessoas reais. Se o ódio é filho da ignorância, o medo é seu pai e o isolamento, sua mãe".

É importante ter uma rede de segurança, já que nem sempre as células radicais que foram abandonadas vão deixar o "desertor" em paz, diz ele. "Precisam de outra gangue, e somos a gangue do bem. A gente os entende. De verdade. Já fomos como eles."

O grupo aposta que a popularização de discursos extremistas a carga de trabalho após a vitória de Donald Trump. Ele levou para seu gabinete nomes que aterrorizam ativistas, como Mike Flynn (que já comparou o islã a câncer) e Stephen Bannon (que chefiava o Breitbart, site adorado pela "alt-right", a direita avessa ao "politicamente correto").

"O clima atual Não sei se ele faz nosso trabalho mais fácil ou mais difícil. Mas certamente mais ocupado", afirma McAleer, o ex-skinhead que passou uns dias com o Afro Reggae na favela da Rocinha, ao visitar o Brasil para a Copa do Mundo de 2014.

Para Picciolini, a retórica de Trump soa como déjà-vu. "Muçulmano terrorista, mexicano estuprador A diferença é que agora o presidente eleito legitima a baboseira que eu ouvia aos 14 anos."

Mas a "alt-right" é mais esperta, acredita ele. "Ela não raspa a cabeça, usa terno. Não tem tatuagem, vai à universidade. Assim fica mais fácil espalhar sua ideologia."

Picciolini também destaca o longo caminho para se reintegrar a uma sociedade a qual um ex-extremista infligiu dor no passado. Quase no fim da entrevista à Folha, em um café em Chicago, a garçonete chegou com o gerente.

Na mesa estava a autobiografia que Picciolini deu à repórter: "Suástica Yankee: Memórias de um Ex-Skinhead". A funcionária julgou o livro pela capa (foto dele fazendo a saudação "heil, Hitler").

O autor se desculpou: "Estava justamente falando contra esse tipo de coisa". E mostrou sua pulseira do movimento Black Lives Matter (vidas negras importam).


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