Folha de S. Paulo


ANÁLISE

Sem Fidel, sobra quase nada do mito do baluarte comunista

"Alerto: estou apenas começando! Se ainda resta nos seus corações um vestígio de amor pelo país, pela humanidade, pela justiça, ouçam cuidadosamente... sei que o regime tentará suprimir a verdade por todos os meios possíveis; sei que haverá uma conspiração para enterrar-me no esquecimento... condenem-me. Isso não importa. A História me absolverá."

As mais célebres palavras de Fidel Castro foram essas, pronunciadas em 1953, perante o tribunal que o sentenciou a 15 anos de prisão pela tentativa fracassada de assalto ao quartel Moncada, a 26 de julho daquele ano.

Meses antes, morrera Stálin e, enquanto na ilha caribenha desenrolavam-se os eventos que um dia seriam narrados como o ensaio geral da Revolução Cubana, na União Soviética tomava corpo o golpe palaciano que conduziria Nikita Khruschov ao poder e à denúncia dos crimes de Stálin, no 20º Congresso do PC, em 1956.

Fidel, aos 27 anos, já pensava a História —assim, com maiúscula— como um juízo de última instância, o que o aproximava dos comunistas. Mas, então, ele era um nacionalista, não um comunista —e até um ano após a tomada do poder pelo seu Movimento 26 de Julho, no início de 1959, os comunistas cubanos continuariam hostis a seu grupo guerrilheiro.

Fidel teria compartilhado a sorte de vários de seus companheiros, fuzilados na hora da captura, dias depois do ataque ao quartel Moncada, não fosse a circunstância fortuita de que um oficial o reconheceu como colega de universidade e ignorou a ordem sigilosa de execução.

Aquele oficial não podia saber que seu gesto de compaixão abriria o caminho para o encontro de Fidel com os comunistas e, consequentemente, para o surgimento de um novo galho na árvore estagnada do comunismo.

"A Ilha", um libreto de propaganda escrito sob o rótulo de reportagem jornalística por Fernando Morais e publicado em 1976, fez enorme sucesso no Brasil e fixou na imaginação dos jovens de esquerda o mito da Cuba castrista como baluarte da justiça social assediado pela potência imperial norte-americana.

Esse mito, que perdura até hoje e está associado à figura de Castro, foi fabricado como narrativa substituta, tomando o lugar do mito original da Revolução Cubana, que se associava principalmente à figura de Che Guevara. No começo, Cuba era farol, não baluarte; uma plataforma de exportação da revolução, não uma fortaleza rodeada por altas muralhas.

Sob Stálin, o comunismo abdicou do internacionalismo, amansando-se na defesa do cânone soviético: o "socialismo num só país". Khruschov não o contestou, mas antes o petrificou sob a lápide da "coexistência pacífica".

Não era casual que o partido cubano fiel a Moscou tratasse os guerrilheiros de Sierra Maestra como aventureiros ou mesmo provocadores.

Mesmo assim, Fidel e Che fizeram sua revolução e, nos primeiros anos, estimularam os grupos que se engajavam na difusão de "focos" guerrilheiros pelas Sierras Maestras da América Latina.

O alinhamento de Cuba à liderança soviética, concluído entre a fracassada invasão da baía dos Porcos (1961) e a crise dos mísseis (1962), começou a secar a fonte do internacionalismo.

Desde que trocou o mito do farol pelo do baluarte, Cuba perdeu uma grande parte do seu encanto.

A figura de Fidel, contudo, sustentava uma ponte imaginária entre o presente melancólico e o passado de loucas esperanças. Não é possível minimizar o impacto da sua saída de cena : agora, não sobra quase nada.


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