Folha de S. Paulo


"Estou bêbada de felicidade", diz viúva de escritor cubano Cabrera-Infante

Silvio Cioffi/Folhapress
LONDRES, INGLATERRA, 16-05-2002: Literatura: o escritor cubano Guillermo Cabrera Infante em sua casa em Londres, onde vive desde 1968. (Foto de Silvio Cioffi/Folhapress)
O escritor cubano Guillermo Cabrera-Infante (1929-2005) na sua casa em Londres, em foto de 2002

Eram 5h em Londres quando a ex-dançarina cubana Míriam Gomez, viúva do escritor anti-castrista Guillermo Cabrera-Infante (1929-2005), despertou de repente, e foi buscar um copo de água na cozinha.

Conta que não é supersticiosa, mas que sentiu a mão tremer e deixou-o cair no chão. Enquanto recolhia os cacos de vidro, pensou: "algo aconteceu". Logo tocou o telefone, e um amigo cubano do outro lado da linha lhe deu a noíticia: "Morreu Fidel".

"Eu estou bêbada de tanta felicidade", desabafou Gomez à Folha, por telefone, de Londres, onde vive no exílio desde os anos 1960.Ela foi obrigada a rumar para a Europa acompanhando o marido, autor de "Três Tristes Tigres", quando este inimistou-se de vez com Fidel Castro.

Cabrera-Infante se transformaria, a partir de então, num dos mais enfáticos opositores do regime cubano no exterior. Primeiro, o casal viveu uns anos na Espanha, mas logo instalou-se na Inglaterra. Sua casa era um ponto de encontro de cubanos exilados críticos ao regime.

Por muito tempo, os dois sonharam em voltar para a ilha depois que Fidel morresse. Cabrera-Infante queria terminar seus dias lá, e tinha muita nostalgia da Havana de sua juventude, justamente a Havana que ressurge agora com edições de suas obras póstumas e inacabadas, que vêm saindo pela Companhia das Letras.

Descontada a euforia inicial com a notícia, Gomez conta que se sentou diante da televisão para ver as notícias e espantou-se com a desinformação geral de comentaristas e jornalistas sobre Cuba.

"Os analistas estão chamando Fidel de populista, mas ele não era isso, e seu estilo também não tinha nada que ver com o populismo do resto da América Latina. Era um gângster local, muito particular da cultura cubana. Pode, sim, ter de certa forma inspirado os populismos latino-americanos, mas ele era uma outra coisa."

Para ela, é preciso ver agora o quanto seu irmão, Raúl, poderá aguentar-se no cargo. "Eu creio que não por muito tempo. Não com esse novo governo norte-americano. Fidel morreu num momento histórico crucial e na hora certa para sua própria biografia, porque o mundo está mudando, e já não há lugar para a velha Cuba nesse novo mapa."

Sobre as manifestações de felicidade nas ruas de Miami, Gomez lamenta que sejam tão carregadas de ódio e não de um sentimento mais construtivo. "É preciso pensar no país de agora em diante, em como reconstruí-lo de uma forma democrática."

Diz que falou com poucas pessoas em Cuba, mas sente que, ali, não estão sabendo como reagir, por ora. "Todos têm medo, de ser denunciados se comemorarem, por exemplo. É um processo que vai ser longo, o de entender o que foi essa morte e como uma população reage a isso. O que vejo ali é silêncio, por enquanto. Os que comemoram são os cubanos em outros países."

Pergunto se ela sonha agora em poder voltar a Cuba. "Não tenho nostalgia do inferno", responde.

"Só voltarei quando for uma democracia plena. Aí sim, porque tenho saudades do país em que cresci, das árvores e das flores, da paisagem mais linda que há na terra. Porque assim é Cuba, o país mais lindo que já vi na vida. Mas só quero voltar depois de que todo esse pesadelo tenha terminado. Se não der tempo, morrerei em Londres, como Guillermo, e levarei comigo a Cuba das minhas lembranças."


Endereço da página:

Links no texto: