Folha de S. Paulo


Opinião

Campanha foi primeira temporada do Trump Show na TV

A vitória do candidato republicano, Donald J. Trump, 70, na última terça-feira (8), confirmou no pleito seu primeiro triunfo sobre sua concorrente democrata, Hillary Clinton –o de ter ditado as regras da disputa eleitoral.

Noviço em política mas experiente em TV, Trump apostou no confronto de personalidades e atirou a segundo plano a discussão de ideias e de programas.

A campanha presidencial de 2016 foi a temporada inaugural do novo Trump Show. A partir de janeiro, data de sua posse como o 45º Presidente dos EUA, mais quatro já estão confirmadas.

Originalmente um liberal de Manhattan, desprovido de qualquer experiência legislativa ou em administração pública, Trump apostou no populismo carismático de direita para tomar de assalto, primeiro, um Partido Republicano em crise de lideranças nacionais e, agora, a Presidência. Neste processo, três lideranças do passado republicano parecem ter modelado a ascensão de Trump.

O primeiro é Barry Goldwater (1909-1998), senador pelo Arizona e candidato presidencial derrotado em 1964 pelo democrata Lyndon B. Johnson (1908-1973). Como Trump, Goldwater impôs como outsider sua postulação à liderança do momento do Partido Republicano. Também como Trump, Goldwater não pestanejava em assumir posições extremadas e polêmicas.

Enquanto o bilionário nova-iorquino ameaçou com um afastamento dos tradicionais aliados norte-americanos da Otan (aliança militar ocidental), o senador sulista defendeu, no auge da Guerra Fria, a possibilidade do uso limitado de armas nucleares. Expulsar imigrantes ilegais e impedir o ingresso de muçulmanos nos EUA foram bandeiras eleitorais de Trump, enquanto Goldwater se opôs veementemente ao fim da segregação racial e ao direito de voto aos negros nos Estados sulistas dos EUA em plenos anos 1960.

A estratégia eleitoral de Trump radicalizou, por sua vez, os ensinamentos da vitoriosa campanha eleitoral de 1968 que conduziu Richard Nixon (1913-1994) finalmente à Casa Branca, depois de ter sido derrotado em 1960 em sua primeira tentativa pelo jovem senador democrata John Fitzgerald Kennedy (1917-1963).

Trump fez seu o slogan de candidato da "lei e ordem" usado por Nixon. Mas sobretudo repetiu a combinação de uma campanha estruturada em torno do máximo de exposição televisiva –território por ele plenamente dominado, por sua extensa experiência como condutor em 14 temporadas do reality show "The Apprentice"– e eventos públicos milimetricamente coreografados. Não por coincidência, o consultor, executivo e produtor de TV Roger E. Ailes, 76, forjador da persona televisiva de Nixon na campanha de 1968, veio reforçar o período final d a campanha de Trump.

Duas grandes diferenças distinguem as campanhas de Trump e Nixon. Primeiro, Trump tornou a espontaneidade uma das chaves de seu carisma popular, enquanto Nixon fez do autocontrole diante dos holofotes uma obsessão. Segundo: talvez jamais um candidato à Presidência dos EUA caracterizou-se tanto com o anti-intelectualismo quanto Trump, enquanto Nixon buscou toda sua vida, pré e sobretudo pós-Presidência, fixar uma imagem de pensador e ideólogo.

Curiosamente, como comprovam as transcrições das gravações ordenadas por Nixon de seu cotidiano na Casa Branca, Trump simplesmente externa em público o mesmo tipo de discurso enraivecido, preconceituoso e grosseiro que Nixon destilava em privado.

EMULANDO REAGAN

Trump se fez candidato como Goldwater, realizou sua campanha como Nixon, mas aspira mesmo repetir a trajetória de Ronald Reagan (1911-2004), o ex-astro de Hollywood que, menosprezado quando alçado à Presidência em 1980, se tornou o último grande mito político republicano, ao comandar uma radical guinada liberal na economia e catalisar o final da Guerra Fria com o esfacelamento do bloco soviético.

Uma distinção essencial os separa de saída: Trump é um neófito político, enquanto Reagan já contava ao chegar à Casa Branca com mais de um quarto de século de militância republicana, incluindo dois mandatos como governador do Estado da Califórnia (1967-1975). A seu favor, contudo, Trump contará com o domínio republicano sobre as duas casas parlamentares (Câmara e Senado), algo jamais conquistado por Reagan.

Reagan, porém, chegou ao topo destroçando nas urnas a tentativa de reeleição do democrata Jimmy Carter, superando-o por uma vantagem de quase 10 pontos percentuais na votação popular, batendo-o em 44 dos 50 estados (mais o Distrito Federal) e humilhando-o no Colégio Eleitoral, com 489 votos contra 49.

Trump, ao contrário, vencerá no Colégio Eleitoral mas foi derrotado por Hillary no total de votos nas urnas (47,4% a 47,7%), tornando-se apenas o segundo republicano no último século (o outro foi George W. Bush, em 2000) a alcançar a Presidência com este inegável deficit de legitimidade.

Mais: Trump recebeu nesta semana menos votos em termos absolutos do que o candidato republicano derrotado em 2012, Mitt Romney, um dos principais opositores à postulação trumpiana dentro do partido. Além disso, no último século, em termos percentuais, apenas um republicano capturou a Presidência com uma votação proporcionalmente ainda menos expressiva do que a de agora do magnata de Manhattan: sim, você apostou certo, foi Bush Jr.

Em 2000 como em 2016, os votos de um terceiro candidato, num país cindido ao meio desde ao menos o último quarto de século, contribuíram para a derrota do candidato democrata. Lá foi o verde Ralph Nader, agora o libertário Gary Johnson. Estivesse Johnson fora do páreo, Hillary teria batido Trump em mais quatro estados (Flórida, Michigan, Pensilvânia e Wisconsin), conquistado mais 75 votos no Colégio Eleitoral e seria a primeira mulher eleita para a Presidência dos EUA.

Foi assim uma vitória no fio da navalha, conquistada devido à sintonia com as classes médias e baixas brancas do discurso autoritário e xenófobo, antiestablishment e antiglobalização, de Trump, num eleitorado total com sete milhões a menos de votantes do que na já complicada reeleição de Barack Obama há quatro anos. Nem o desempenho de Hillary Clinton foi tão desastroso quanto o apregoado (ela perdeu vencendo, afinal) nem o triunfo de Trump, tão maiúsculo ou surpreendente.

Resta saber se, visando emular Reagan, o Presidente Trump será distinto do candidato. Isto é, se as promessas de varrer o legado de Obama (seguro saúde, liberalidade em costumes, política externa de contenção, combate ao aquecimento global etc) terão o mesmo destino de outras bufonarias da campanha.

Pragmático antes que ideológico, Trump instrumentalizou o extremismo reacionário para se fazer eleger. Se aplicá-lo de fato em ações de governo, sua eleição pode confirmar-se como "a tragédia americana" anunciada por David Remnick no site da revista "New Yorker" poucas horas depois do discurso de vitória. Mas a imprevisibilidade é da essência do Trump Show. Ansioso, o mundo segurará a respiração até a estreia em janeiro. Boa noite e boa sorte.

AMIR LABAKI é cineasta, crítico de cinema e fundador do festival É Tudo Verdade de documentários


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