Folha de S. Paulo


Em campo da ONU, refugiados relatam terror e crise financeira em Mossul

O sol estava forte na planície do deserto de Nínive quando o comboio de caminhões cruzou o checkpoint das Forças Armadas iraquianas que separa o front de batalha das áreas liberadas da facção terrorista Estado Islâmico na tarde do último domingo (6).

Dentro das caçambas descobertas estavam cerca de 2.500 civis que fugiram dos bairros periféricos de Mossul, onde batalhas ocorrem entre as Forças Especiais iraquianas e os militantes do EI.

Ao cruzarem a linha imaginária que separa a guerra da paz, não expressaram alegria, alívio ou contentamento. Permaneceram quietos enquanto seguiam para o novo campo de refugiados montado pela ONU na semana passada para receber a leva de pessoas que vem de Mossul.

No meio do deserto, a cerca de 10 km da cidade que é o bastião do Estado Islâmico, ainda era possível ouvir os disparos de metralhadoras e da artilharia contra os extremistas que mantêm a resistência em pequenas vilas que circundam Mossul, a segunda maior cidade do Iraque.

Viajaram mais uma hora até desembarcarem no campo de Hasansham, aberto na sexta(4) pelas Nações Unidas.

Cada um dos que fugiram de Mossul foi revistado cuidadosamente pelos soldados peshmerga, o Exército curdo.

Há a desconfiança que muitos dos que chegam em meio aos refugiados sejam, na verdade, militantes infiltrados para montar células de ataque adormecidas. Há duas semanas, 110 desses militantes atacaram Kirkuk, a cerca de 100 km do campo.

A ONU estima que vai precisar abrir mais dez campos nas próximas semanas para receber cerca de 320 mil pessoas, apenas nesta parte do Iraque. Em Hasansham, 3.000 pessoas chegam, em média, todos os dias.

No caos da chegada, os refugiados contaram as histórias de terror das últimas horas, quando estiveram presos em meio a uma batalha feroz entre militantes do EI e das Forças Especiais iraquianas. Todos viviam em bairros periféricos do leste de Mossul, onde os soldados iraquianos vêm enfrentando resistência maior do que imaginavam.

"Hoje de manhã nossos vizinhos morreram, a casa deles foi atingida por um míssil", afirmou o eletricista Boutros Hasan (nome fictício), que havia deixado Mossul poucas horas antes. Ele conta que os confrontos entre os soldados e os militantes do EI já duravam três dias em seu bairro. "Era impossível sair de casa. Tiros, bombas, foguetes simplesmente não paravam. Só hoje de manhã os soldados conseguiram avançar um quarteirão à frente da minha casa e pudemos sair."

Ele diz não saber quem fez o disparo que matou seus vizinhos. "É impossível saber, mas pode dizer que foi o Daesh [acrônimo em árabe para o Estado Islâmico]."

Perto dele o mecânico Said Walis (outro nome fictício) parecia não acreditar que havia reencontrado seu amigo de infância Zayr Al-Abdeen, hoje um soldado do Exército curdo. Melhores amigos desde a escola primária, os dois não se viam desde que o EI tomou Mossul, em 2014.

Beijaram-se, abraçaram-se e ficaram de mãos dadas, uma das mais tradicionais demonstrações de carinho entre homens nesta parte do mundo. "No começo, quando eles chegaram, eu achava que seria algo passageiro, que logo a vida voltaria a ficar normal", relata, sobre os militantes do EI. "Mas o tempo foi passando, as coisas pioraram e simplesmente não podíamos ir embora. Achei que nunca mais veria meus amigos, minha família."

Said também havia saído de Mossul naquela manhã sem entender por que havia sido levado para o campo de Hasansham. "Eu sou de Irbil, minha família é de Irbil, não sou Daesh. Já repeti isso mil vezes, mas não me deixam sair. Conferiram minha identidade e dizem que tenho que esperar com minha mulher e meus dois filhos aqui", diz.

REGIME

Sob o EI, os moradores não podiam usar telefones. Para fugir do veto, Said separou o celular em partes: bateria, chip e o aparelho, enterrados em diferentes pontos do quintal. Só as tirava do esconderijo para ligar. "Uma vez me descobriram e tomei quarenta chibatadas na rua."

Histórias de terror sob o EI são frequentes, mas também são comuns os relatos de que a vida na 'capital' do califado não foi necessariamente ruim nesses últimos dois anos.

A maior reclamação dos que chegavam ao campo era sobre a situação econômica, que se deteriorou de forma brutal nos últimos meses, com uma recessão profunda que parece ter atingido todas as camadas da população.

"O mais difícil era o dinheiro, não conseguíamos dinheiro algum, e o Estado Islâmico só pagava salários para os militantes, não para todos os trabalhadores", conta Abdulah, outro que se recusa a dar seu nome verdadeiro quando conversa com jornalistas. "Tenho família lá ainda, podem ter problemas", diz ele.

Abdulah e o irmão Mohamed (outro nome fictício escolhidos por eles) não passaram pelo terror de estar em meio a uma batalha, pois moravam em um bairro mais próximo do centro de Mossul, onde os combates não chegaram.

"Ontem de noite, o EI foi à nossa casa e disse que deveríamos sair, porque haveria batalhas nas ruas e seria perigoso. Caminhamos alguns quilômetros e os iraquianos nos pegaram", diz Abdulah, com a filha de 1 ano no colo.

Sua história contradiz os relatos de que os militantes estão impedindo que civis saiam da cidade e que muitos deles estariam sendo usados como escudos humanos. "O Estado Islâmico nos ajudou, nos escoltou", diz.

Mahamed Hassam Ahmed, 10, parecia ser um dos poucos felizes no domingo (6). Ele pegou uma garrafa de água vazia e fez dela uma espécie de caminhão. Amarrou um barbante na ponta da garrafa e em sua cintura e passou boa parte da tarde correndo com seu brinquedo em meio às tendas. Com a garrafa repleta de pedras, Mahamed fingia estar transportando gente. Gente pobre, ele fez questão de frisar. Seu sonho é ser motorista de caminhão.

"Mas no meu caminhão de verdade eu não quero transportar gente pobre, só doces e chocolates. Quero ser o transportador de coisas gostosas", disse, tímido. Ele conta que seu maior medo era ser pego pelo EI para aprender a fazer bombas, uma atividade comum entre crianças que vivem em Mossul.

"Eu só brincava dentro de casa, não tinha escola, não tinha amigos. Aqui é diferente", disse, ao encerrar a conversa para fazer mais uma viagem carregando pessoas pobres em seu caminhão imaginário.


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