Folha de S. Paulo


Com 'manipulação digital', Google e Facebook podem interferir em pleito

Você está tendo um dia tremendamente maçante no trabalho? Experimente brincar de autocompletar no Google. Digite o início de uma pergunta no motor de buscas visto como o mais fidedigno do mundo e espante-se ao ver a curiosidade agregada da multidão global entrando em ação para antecipar-se à sua pergunta.

Quando fiz buscas por "quem", "o que" e "onde", as perguntas que apareceram no Google foram "quem é Donald Trump, "o que significa Trump" e "onde vou para votar". Parece que a eleição presidencial americana é o problema global mais urgente do momento para os usuários do Google, e parece também que muitos ainda não estão familiarizados com o septuagenário candidato republicano, louco por atenção, defensor da construção de muros, apalpador de mulheres, três vezes casado e dono de um histórico de seis falências corporativas.

Brian Snyder-26.set.2016/Reuters
Republican U.S. presidential nominee Donald Trump greets Democratic U.S. presidential nominee Hillary Clinton after their first presidential debate at Hofstra University in Hempstead, New York, U.S., September 26, 2016. REUTERS/Brian Snyder -TPX IMAGES OF THE DAY ORG XMIT: HEM256
Donald Trump e Hillary Clinton se cumprimentam após debate em setembro

Ou será possível que os resultados das buscas e o modo como são ordenadas refletem os interesses do Google, e não de seus usuários? A empresa não tem nenhuma obrigação de divulgar detalhes do algoritmo próprio que utiliza para lidar com os temas buscados e para ordenar as páginas da Web. Assim, só nos resta palpitar se existe algum viés intencional ou não intencional nas informações que o Google apresenta e se esse viés possivelmente induz eleitores a tomar atitudes. Essa questão levou a revista "Science" a fazer uma pergunta pertinente: "Pode o Google influenciar a eleição presidencial?".

Um olhar lançado sobre as pesquisas sugere que sim —teoricamente. Em um estudo, Robert Epstein, psicólogo do Instituto Americano de Pesquisas Comportamentais, na Califórnia, construiu um motor de buscas enviesado, convocou cerca de 300 eleitores americanos típicos a participar e pediu que escolhessem seu candidato favorito numa eleição com apenas dois nomes (que, no caso, foi a disputa de 2015 entre Julia Gillard e Tony Abbot pelo cargo de primeiro-ministro da Austrália, sobre a qual os participantes pouco sabiam).

Os participantes cujas buscas resultaram no aparecimento das páginas de internet de um candidato perto do topo da lista mostraram tendência maior a escolher esse candidato; aqueles que receberam um misto mais bem balanceado de links se dividiram de modo mais igual. Epstein também testou suas teorias em eleições reais na Índia, com resultados semelhantes.

Ele concluiu que a capacidade de manipular motores de busca é "um meio de controlar mentes em escala maciça". Vale observar que não há evidências de que o Google esteja manipulando motores de busca dessa maneira, embora a empresa utilize critérios de "relevância" e "credibilidade" para determinar a ordem em que aparecem os resultados das buscas.

Em 2010 o Facebook decidiu incentivar o voto nas eleições para o Congresso nos EUA, realizadas na metade do mandato presidencial, incluindo lembretes nos feeds de alguns usuários, um botão no qual clicar depois que tivessem votado e informações sobre se seus amigos já o tinham feito. A gigante das mídias sociais calculou que sua intervenção foi responsável por 60 mil votos, ao todo. Soa como muito pouco —até que você se recorda que George W. Bush chegou à Presidência em 2000 graças a 537 votos na Flórida.

O professor Jonathan Zittrain, da Escola Harvard de Direito, descreveu desde então o potencial de "manipulação eleitoral digital" —ou seja, de corporações de tecnologia influenciarem os resultados de eleições, por exemplo enviando a alguns usuários e não a outros lembretes sobre a importância de votar. Facebook e Twitter já conhecem nossas inclinações políticas. A manipulação eleitoral digital é possível sempre que informações personalizadas são fornecidas por uma parte intermediária e é capaz de enviesar a disputa em uma direção ou outra quando a disputa é apertada.

O que é ainda mais insidioso é que essa manipulação pode ser feita sub-repticiamente. Afinal, com os feeds personalizados de notícias nada é falso; em vez disso, usuários diferentes recebem variações distintas do mesmo mundo, de modo que contemplamos uma realidade "feita sob medida" para cada um de nós. O Facebook agora é proprietário do WhatsApp e do Instagram, o que lhe proporciona mais dados e mais canais de influência, especialmente entre os jovens.

É por isso que é tão urgentemente necessária uma discussão pública sobre o papel das empresas de tecnologia como intermediárias na circulação de informação imparcial. Porque, como Donald Trump não chegou a dizer exatamente, "pode haver alguma coisa acontecendo"

Tradução de CLARA ALLAIN


Endereço da página:

Links no texto: