Folha de S. Paulo


Basta chuva forte e alagamento para avanço do cólera em áreas do Haiti

Em áreas do Haiti arrasadas pelo furacão Matthew, que matou centenas de pessoas no início de outubro, basta uma chuva forte seguida de alagamento para ver subir o total de casos de cólera.

"O número aumentou imediatamente após o furacão [que passou na ilha na primeira semana de outubro], começou a cair com as medidas tomadas, mas com a chuva forte do último dia 20, cresceu de novo", afirma Jean Luc Poncelet, representante da Opas (braço da OMS para as Américas) no país.

Apesar da temporada de chuvas favorecer a transmissão da doença, por água e comida contaminada, é possível medir pelos números o impacto que teve o furacão. A passagem do Matthew, em si, matou ao menos 546 pessoas segundo dados oficiais, mas agências de notícias relataram ao menos mil mortes.

Nas cinco semanas antes do Matthew, a região de Grand'Anse (onde fica a cidade de Jérémie) registrava até 50 casos suspeitos de cólera por semana. Na semana do furacão, os registros pularam para 128. E, na semana seguinte, entre 9 e 15, foram a 313, segundo dados da Opas.

"Esses números, em termos absolutos, ainda são gerenciáveis. Mas você percebe como o cólera está muito presente no Haiti", diz ele.

A ONU calcula que mais de 9.200 pessoas morreram da doença no Haiti desde outubro de 2010, quando o cólera foi introduzido no país.

Estudos científicos já apontaram evidências de que a doença tenha chegado ao Haiti com tropas na Minustah (Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti) vindas do Nepal para ajudar na reconstrução do país após o sismo de 2010, que matou mais de 200 mil haitianos.

Entre 2010 e 2011, mais de 537 mil casos suspeitos foram registrados. O impacto do cólera, endêmico, caiu desde então —2015 registrou pouco mais de 36 mil casos.

O debate sobre a responsabilidade das Nações Unidas na chegada do cólera no Haiti, porém, não arrefeceu.

No fim de outubro, Philip Alston, relator especial de pobreza extrema e direitos humanos, especialista independente no sistema de direitos humanos da ONU, chamou de "uma desgraça" a forma como a organização lida com o caso. E cobrou a admissão de responsabilidade legal.

Desde 2011, um grupo tenta obter, da organização, compensação financeira e o pedido formal de desculpas.

O caso, que pretende virar uma ação coletiva em nome de 5.000 vítimas, está na Justiça norte-americana desde 2013, mas sem sucesso até aqui pela atribuída imunidade às Nações Unidas. O próximo passo seria ir à Suprema Corte, após a rejeição de um recurso em agosto.

"Estamos em compasso de espera", diz Beatrice Lindstrom, advogada do IJDH (Instituto para Justiça e Democracia no Haiti), uma das entidades que atuam no caso.

"A rejeição do nosso recurso coincidiu com o anúncio pela ONU de um novo plano para o cólera no Haiti, então parece que eles finalmente estão reconhecendo um papel na epidemia e dizendo que farão algo", afirma.

Este ano, a ONU reconheceu seu possível envolvimento no caso e falou em "responsabilidade moral". No fim do mês, a organização disse que tenta levantar US$ 200 milhões como compensação às famílias dos que morreram.

ÁGUA E ESGOTO

O haitiano Carl Frédéric, coordenador-adjunto dos Médicos Sem Fronteiras no país, diz que o maior problema que eles enfrentam, hoje, é acesso à água potável —que já era um obstáculo no passado e foi agravado após a destruição e contaminação provocadas pelo furacão Matthew (estima-se que 90% do sistema de água encanada no sudoeste do Haiti foi danificada).

"Todos precisam ter acesso à água potável, é o ponto principal. Em segundo lugar, é preciso promoção da higiene, que precisa ser reforçada, porque as pessoas tendem, quando não há promoção da higiene, a achar que não há mais cólera", afirma ele.

Poncelet faz uma comparação com a realidade paulistana. "Se você tem uma epidemia em São Paulo, uma família de cinco pessoas com cólera, você provavelmente teria contaminação dos contatos diretos das pessoas, mas não espalharia, porque há acesso amplo a água e redes de saneamento", diz.

Dominique Legros, especialista em cólera da Organização Mundial de Saúde, ressalta que o total de casos caiu 90% entre 2011 e 2015 e que, com a grande contaminação do ambiente pela bactéria e a precária infraestrutura do país, não chega a ser uma surpresa que se leve alguns anos para controlar a doença.

Legros destaca a importância de investir no país não apenas emergencialmente e se diz otimista sobre a eliminação do cólera no Haiti.

"É possível. Tenho certeza de que é possível", afirma.


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