Folha de S. Paulo


Favorita na eleição dos EUA, Hillary tenta conquistar legitimidade

O presidente Barack Obama gosta de dizer que Hillary Clinton é a pessoa mais qualificada a já ter se postulado para a presidência. E, se as pesquisas atuais estiverem corretas e se mostrarem resilientes, ela será uma das pessoas mais qualificadas a serem eleitas e chegar a esse cargo.

Mas uma das grandes ironias dessas eleições é que a primeira mulher presidente dos Estados Unidos pode ser vista por muitos como a presidente menos válida do país, vinculada a um espectro de suspeita, desconfiança e ilegitimidade.

Isso decorre em parte do fato de que seus adversários, durante todo o tempo, reclamaram que o sistema, dos meios de comunicação ao aparelho eleitoral –foi "manipulado" e injustamente inclinado a seu favor, e isso acontece em parte por causa dos desfavoráveis bits de informação que vieram à luz a partir de uma divulgação ilegal.

Durante as primárias, Bernie Sanders (que agora apoia Hillary Clinton) deixou muito claro que ele pensava que tanto os meios de comunicação como o próprio Partido Democrata não haviam sido justos com ele. Como expressou: "Sabíamos que estávamos desafiando o establishment".

CONFIANÇA

Isso se tornou um lema da sua revolução, e uma força corrosiva para a confiança dos eleitores no processo das primárias. Um estudo de março da Pew registrou um declínio dramático na confiança dos democratas em seu processo de nominação:

"Democratas e republicanos divergem sobre se as primárias presidenciais são uma boa maneira de determinar os candidatos mais qualificados. Atualmente, 42% dos eleitores republicanos têm uma visão positiva do processo das primárias, em comparação com 30% dos democratas. A percentagem de democratas que expressam uma visão positiva do processo das primárias diminuiu 22 pontos percentuais", em relação aos 52% de fevereiro de 2008. "As opiniões dos republicanos são um pouco diferentes do que eram em 2000 ou 2008."

No início de maio, Sanders disse em um comício:

"Quando falamos de um sistema manipulado, também é importante entender como a Convenção Democrata funciona. Ganhamos, neste momento, 45% dos delegados comprometidos, mas só levamos 7% dos superdelegados."

No final de maio, Sanders voltou atrás sobre o sistema ser "manipulado" no (programa de televisão) "Face the Nation" (enfrente a nação), ao dizer:

"O que me irritou, e o que eu acho que é - não usaria a palavra ´manipulado`, porque sabíamos o que são as palavras - mas o que é realmente idiota é que você tenha primárias fechadas, como no estado de Nova York, onde 3 milhões de pessoas que são democratas ou republicanas não puderam participar, onde você tem uma situação em que mais de 400 superdelegados aderiram à campanha de Hillary antes que qualquer outra pessoa entrasse na disputa, oito meses antes de o primeiro voto ser computado."

MANIPULAÇÃO

Blogs como Vox e FiveThirtyEight tentaram desmascarar as alegações de manipulação, ao afirmarem, basicamente, que, enquanto algumas regras funcionaram contra Sanders, outras funcionaram a seu favor, e no final ele simplesmente perdeu porque teve menos votos. Mas, ainda assim, a ideia de "manipulação" permaneceu.

Essa ideia foi reforçada com a divulgação do WikiLeaks de e-mails obtidos ilegalmente que mostraram que algumas pessoas no Comitê Nacional Democrata possuíam um desprezo explícito por Sanders e, como o "New York Times" informou, "mostraram funcionários do partido conspirando para sabotar" sua campanha.

Ao passo que o fundamento das acusações de Sanders estava, pelo menos, baseado em problemas reais, embora muitos deles não fossem, de jeito nenhum, novos neste ciclo, o discurso de Donald Trump sobre manipulação foi construído com conspiração selvagem e conjeturas.

Trump vem batendo na tecla, há semanas, de que as eleições gerais estão sendo "manipuladas" e aparentemente essa mensagem está penetrando em uma grande parte dos seus partidários, assim como penetrou entre uma grande parte dos eleitores das primárias democratas.

Uma pesquisa NBC/SurveyMonkey divulgada na sexta-feira indicou que 45% dos republicanos definitivamente não aceitariam ou provavelmente não aceitariam o resultado das eleições se seu candidato perdesse, em comparação com 30% dos independentes e 16% dos democratas que sentiam o mesmo.

Nesse ponto, não fica claro nem sequer se Trump admitiria elegantemente a derrota se perdesse. Na verdade, a elegância pode estar fora do seu alcance.

E, embora haja sinais de que Hillary está reduzindo a brecha de entusiasmo em relação a Trump, minha sensação é que o sucesso atual de Hillary é tanto um repúdio ao ódio de Trump quanto uma aceitação de Hillary. Para mim é algo mais parecido a exaustão do que a alegria.

MOMENTO HISTÓRICO

Podemos estar à beira de algo histórico. Então, por que isso se parece tanto com um consentimento? Por que não há mais pessoas correndo para as urnas para votar nessa mulher imensamente qualificada, em vez de se apressar para votar contra esse homem lamentavelmente desqualificado? Uma das razões é que seus rivais masculinos conseguiram definir a disputa que ela pode ganhar como manipulada.

Acho que é justo dizer que nossos processos eleitorais não são perfeitos. Mas eles nunca foram. E nenhum candidato foi perfeito. Então por que essas imperfeições devem ser anulantes no exato momento em que uma mulher está à beira da vitória? Hillary Clinton é uma mulher que está vencendo os homens no próprio terreno deles. Viva com isso.

Por fim, tudo isso significa que uma potencial gestão Hillary Clinton pode começar sob nuvens e contra vento frio. Poderia ser um início, mas também o encontro com um iceberg. Os atos revolucionários têm um preço.


Endereço da página:

Links no texto: