Folha de S. Paulo


O triste destino de um museu sobre a Revolução Cultural da China

A ideia de construir o primeiro museu dedicado à Revolução Cultural da China –uma campanha política iniciada por Mao Tse-tung que resultou na morte de mais de um milhão de pessoas– sempre foi arriscada.

Mas Peng Qi'an, antigo dirigente local do Partido Comunista e fundador do museu, passou duas décadas recolhendo doações individuais e de departamentos governamentais para criar o Museu da Revolução Cultural, inaugurado nas colinas da Área Cênica do Pagode Chenghai em 2005.

Em meio a pagodes de tetos amarelos que se projetam rumo ao céu, Peng e um pequeno grupo de voluntários construíram arcos memoriais nas trilhas e vias íngremes do parque, em meio à luxuriante vegetação subtropical. O local, em Chenghai, um distrito do município de Shantou, parecia apropriado para preservar lembranças –no budismo, os pagodes estão associados aos mortos, e muitas vítimas locais da Revolução Cultural repousavam ali, sepultadas em valas comuns.

Lam Yik Fei/The New York Times
Visitantes em museu chinês sobre a Revolução Cultural
Visitantes em museu chinês sobre a Revolução Cultural

Eles erigiram estátuas de Liu Shaoqi, antigo presidente chinês perseguido por Mao, que morreu na prisão em 1969, e do marechal Ye Jianying, um líder militar da província de Guangdong, onde fica Shantou.

Estudiosos e parentes de vítimas, em toda a China, doaram pedras nas quais estavam talhadas histórias e admoestações.

"Os 10 anos de penúria alarmam os fantasmas e os deuses", dizia uma inscrição talhada em uma parede.

A peça central do museu, um imponente edifício revestido de placas verdes, vermelhas e amarelas, descreve a brutalidade da campanha com a ajuda de documentos e fotos.

As placas começaram a surgir no final de abril, algumas semanas antes do 50º aniversário do início da Revolução Cultural: "Porque precisamos ajustar as funções do parque, serão realizados reparos".

Chegaram trabalhadores trazendo concreto, faixas de propaganda e andaimes metálicos. Eles recobriram os nomes das vítimas de concreto, envolveram o principal pavilhão de exposição em faixas com os dizeres "valores socialistas básicos", espalharam pôsteres de propaganda vermelhos e amarelos sobre os memoriais de pedra, e ergueram andaimes em torno das estátuas de críticos de Mao.

Esse acobertamento, literal, apanhou Peng de surpresa.

"Construímos esse museu de boa fé", ele disse. "Queríamos lamentar os mortos, recordar a História, aprender suas lições, e jamais permitir que a tragédia da Revolução Cultural se repita".

Embora o Partido Comunista expresse desaprovação aos 10 anos de tumultos que a Revolução Cultural causou, também proíbe debate público livre sobre os acontecimentos. Em lugar disso, procura sustentar seu veredicto, promulgado em 1981, de que Mao "cometeu graves erros" na Revolução Cultural, mas que "seus méritos são primários, e seus erros secundários".

Repartições do governo de Shantou foram contatadas em busca de comentários, mas as ligações não foram atendidas, ou as pessoas que as atenderam desligaram quando informadas sobre o motivo do contato. Pessoas próximas a Peng se recusaram a responder perguntas, afirmando que isso não seria conveniente.

Mas o clima invernal que se abateu sobre o museu está em sincronia com o aperto político mais amplo imposto pelo presidente Xi Jinping, cujo mandato vem incluindo apelos à pureza ideológica em estilo maoista, com autoridade concentrada nas mãos do presidente e repressão às dissidências.

O acobertamento foi espantosamente completo.

Ao longo de uma sinuosa estrada na colina, uma gigantesca muralha de concreto que portava os dizeres "Pagode do Jardim das Almas" agora porta um slogan otimista: "Sonho da China".

As faixas de propaganda que cercam o pavilhão principal advogam valores como o patriotismo e a justiça, e impedem o acesso ao acervo exibido no interior.

Lam Yik Fei/The New York Times
Escultura de pedra em museu da Revolução Cultural da China coberto com uma bandeira rasgada sobre valores socialistas
Escultura de pedra em museu da Revolução Cultural da China coberto com uma bandeira rasgada sobre valores socialistas

A estátua dourada do marechal Ye, a quem é atribuído crédito pelo relaxamento da Revolução Cultural depois da morte de Mao em 1976, está envolta em chapas metálicas, e se descolore no escuro. Andaimes cercam a estátua do presidente Liu erigida em uma grande plataforma ao ar livre, que as pessoas usavam como local para expressar seu luto.

Mais de 400 pessoas foram mortas e cinco mil saíram feridas em disputas entre facções no distrito de Chenghai, de acordo com uma história do período publicada pelo comitê central do Partido Comunista na área.
Uma das vítimas foi Lin Hua, irmão mais velho de Peng e diretor da escola de segundo grau de Chenghai, morto aos 46 anos e sepultado no local em 1967, diz Peng.

Ele mesmo teve seu nome incluído em uma lista de execuções por ser "capanga da quadrilha contrarrevolucionária de Yu e Lin", dois líderes locais que caíram em desgraça. Por motivos que Peng continua a desconhecer, seu nome foi retirado da lista, ele conta.

Diante do colapso de décadas de trabalho, Peng parecia atônito, e ansioso por reafirmar que as intenções do museu eram puramente históricas e não políticas.

O museu era "completamente simples e seguia a definição do partido" sobre aquela era, ele afirmou. "Não tínhamos outras intenções".

No sopé de uma colina, ao lado de uma barragem em cujo lago as pessoas passeiam de pedalinho, uma pedra em forma de coração, do tamanho de uma poltrona, repousa entre árvores atrofiadas.

Uma placa de plástico amarelo e vermelho, com os dizeres "valores socialistas básicos", encobre a pedra e obscurece a mensagem abaixo, de acordo com um homem de meia-idade que vendia comida em uma barraca próxima.

"A inscrição dizia 'aos que vivem para sempre em nossos corações'", ele revelou, antes de se afastar sem revelar seu nome.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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