Folha de S. Paulo


ANÁLISE

'Timochenko', de olho nas urnas; Santos, no quadro da história

Os discursos do presidente colombiano Juan Manuel Santos e o do líder das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), Rodrigo "Timochenko" Londoño, na noite desta segunda (26), deixaram claras as pretensões políticas e pessoais de cada um a partir daqui.

A dois anos do fim de seu segundo e último mandato e sem possibilidades de concorrer a uma nova eleição, Santos tinha na paz a grande aposta de sua gestão.

Juan Pablo Bello/Presidência da Colômbia/Xinhua
Juan Manuel Santos cumprimenta o líder das Farc
Juan Manuel Santos cumprimenta o líder das Farc "Timochenko" após assinar acordo, em Cartagena

Com a economia colombiana crescendo de modo sustentável nos últimos anos, apesar de certa desaceleração devido ao contexto internacional, o sucessor de Álvaro Uribe (2002-2010) centrou seus esforços em conseguir um lugar para si na história da Colômbia como o homem que finalmente trouxe a paz a um país convulso há seis décadas.

Pode parecer contraditório, afinal, Santos foi ministro da Defesa do linha-dura Uribe e ordenou, ele próprio, operações militares contra a guerrilha.

Mas, uma vez eleito presidente, percebeu que uma série de fatores construíam um contexto favorável para propor negociar a paz naquele momento, e a iniciativa frutificou, transformando-se no principal capital político com que contou para reeleger-se a um segundo mandato, em 2014.

Se até aqui os legados mais favoráveis de presidentes colombianos em tempos recentes haviam sido o de César Gaviria (capturou Pablo Escobar e deu uma estocada final no Cartel de Medellín) e o de Álvaro Uribe (levou segurança às grandes cidades, ao adotar uma política de enfrentamento bélico à guerrilha), Santos poderá ficar mais bem colocado ante o julgamento da história do que esses antecessores se, de fato, lograr a implementação do acordo que porá fim a um conflito que matou 250 mil pessoas.

"Acabou a horrível noite", gritou o presidente, mais de uma vez, em seu discurso, mencionando um trecho do hino nacional colombiano. Esse foi o ponto mais emotivo de seu discurso, no qual ouviu a resposta mais entusiasta da plateia, que passou a repetir o coro: "não mais guerra, não mais guerra". Panos brancos agitados no ar, lágrimas nos rostos dos convidados, e no do próprio mandatário.

Aos que pensam em votar "não" no plebiscito do próximo domingo (2), o presidente insistiu que a anistia não será ampla como vem dizendo a oposição, e que os tribunais especiais punirão de alguma forma (ainda que não esteja prevista a prisão) os crimes de lesa-humanidade (sequestro, tortura, morte, estupros, recrutamento de menores).

Também pensando no eleitorado mais resistente à sua proposta, disse que não concordava ideologicamente com o que o partido das Farc proporá ao país. "Mas vou defender até o fim seu direito a expressar suas opiniões. Pois isso é a democracia. Senhores das Farc, sejam bem-vindos à democracia." Nesse momento, também foi muito aplaudido.

E, aos que consideram que o acordo tem muitas falhas, admitiu: "Prefiro um acordo imperfeito que salve vidas a uma guerra perfeita que semeie mortes em nosso país e em nossas famílias."

'TIMOCHENKO' PRESIDENTE?

Nas ruas e bares de Cartagena, na noite desta segunda-feira, predominavam os elogios à retórica e à consistência da mensagem do líder das Farc, Rodrigo "Timochenko" Londoño.

Logo no início da sua fala, ganhou a simpatia do público local de Cartagena —cidade turística, mas de infraestrutura debilitada, alta criminalidade e bolsões de pobreza, geralmente lembrada para esses atos faustosos do governo, mas depois esquecida. "Timochenko" mencionou a imensa população das favelas e de bairros de "deslocados" das periferias da cidade.

Não deixou de homenagear antigos líderes da guerrilha que promoveram ações bastante violentas e muitas mortes, como Manuel Marulanda e Alfonso Cano, mas também disse que agora o momento é outro.

Pediu à comunidade internacional um esforço para que se encontrassem soluções negociadas também para os conflitos na Palestina e em outros territórios em guerra.

"Aqui de ultramar, desde Cartagena de Indias, pedimos uma paz negociada ao conflito na Síria, para que inocentes parem de morrer, para que refugiados deixem de ser maltratados ao pedirem abrigo em outros países."

Nesse momento, "Timochenko" foi novamente muito aplaudido.

O momento mais emotivo, porém, foi mesmo aquele em que levantou a voz para pedir perdão às vítimas dos ataques da guerrilha.

"Em nome das Farc ofereço sinceramente o perdão a todas as vítimas por toda a dor que causamos nessa guerra." Novamente, muitas lágrimas e acenos por parte do público, em muito composto por familiares e amigos de vítimas das Farc, trazidos pelo governo de várias regiões do país.

Mas "Timochenko" não deixou de reforçar sua visão política para este momento da Colômbia. Deixou claro que o acordo foi feito porque a guerrilha quer continuar sua luta, agora por meios democráticos. "Aqui ninguém abriu mão de suas ideias".

E acrescentou, com ironia que causou risos no público: "Esse acordo não significa que o socialismo e o capitalismo se abraçaram. Nós seguiremos defendendo nossas ideias."

O texto do acordo permitirá às Farc ocuparem dez vagas no Congresso nas duas próximas legislaturas, mesmo que não alcancem os votos necessários para obter os postos (cinco na Câmara e cinco no Senado).

O partido das Farc, a ser lançado em maio, também poderá concorrer a eleições presidenciais.

Ainda segundo o acordo, mesmo cumprindo condenações pela Justiça especial, os ex-líderes e ex-guerrilheiros podem desde já postular-se a cargos e exercer cargos na vida pública. "Timochenko" não esconde suas pretensões, nem de entrar no Congresso, nem de postular-se ao cargo máximo do país, talvez nas eleições de 2022.

GABO

Curiosamente, o Nobel colombiano Gabriel García Márquez, que costumava defender "a paz, mas com os olhos abertos", como quem pede vigilância e esforço dos cidadãos para mantê-la, foi citado pelos dois lados da contenda encerrada nesta segunda-feira.

"Timochenko" mencionou a importância de o acordo estar sendo assinado na cidade que o escritor amava tanto e sobre a qual escreveu: "Bastou dar um passo dentro da muralha, para ver em toda sua grandeza a luz das seis da tarde, e não pude reprimir o sentimento de ter voltado a nascer". Assim, o líder guerrilheiro estimulou seus compatriotas a considerar o dia da assinatura da paz um renascimento.

Já o presidente Santos disse que Gabo era o grande ausente na cerimônia, ocorrida na cidade onde hoje estão suas cinzas.

"García Márquez, que foi artífice de tantos processos de paz, que de sua Cartagena querida voem as mariposas amarelas por toda a Colômbia, que ganha hoje uma segunda oportunidade sobre a Terra", disse o presidente, em referência a passagens do livro "Cem Anos de Solidão".

Editoria de arte/Folhapress

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