Folha de S. Paulo


Crise econômica na Venezuela leva temor a Cuba, seu aliado mais próximo

A crise na Venezuela se estendeu a Cuba, seu aliado mais próximo, com a advertência de Havana sobre racionamento de energia e outras carências que alguns temem poder ser o sinal de um retorno à austeridade econômica que traumatizou a nação insular depois do colapso da União Soviética.

Apenas um ano após a euforia que se seguiu ao restabelecimento das relações diplomáticas com os EUA, as esperanças de uma recuperação econômica em Cuba se desvaneceram e uma tendência de preocupação e frustração é evidente nas ruas da capital.

Enrique de la Osa - 12.jul.2016/Reuters
Os venezuelanos Hugo Chávez e Nicolás Maduro são vistos ao lado de Fidel Castro em escritório
Os venezuelanos Hugo Chávez e Nicolás Maduro são vistos ao lado de Fidel Castro em escritório

"Justamente quando pensávamos que estávamos indo para a frente, tudo está indo embora de novo", diz a aposentada de Havana Miriam Calabasa. "Estou preocupada com que as pessoas vão decidir dizer:´Chega`. E aí?"

Instalações do governo agora fecham cedo, e usam janelas abertas e ventiladores zumbindo, em vez de ar-condicionado. A já escassa iluminação pública foi ainda mais reduzida, e o trânsito em Havana e em outras cidades diminuiu visivelmente.

"Nada vai ficar melhor no curto prazo; só pode piorar", se preocupa Ignacio Perez, mecânico. "As estradas não vão ser pavimentadas, nem as escolas, pintadas, nem o lixo, recolhido, nem o transporte público, melhorado, e assim por diante."

O presidente Raúl Castro resumiu a dimensão do problema neste mês, ao dizer à Assembleia Nacional que "todos os gastos, menos os essenciais" devem ser interrompidos.

Ele culpou os "limites que enfrentam alguns dos nossos principais parceiros comerciais, devido à queda nos preços do petróleo... e a uma certa retração no abastecimento de petróleo contratado com a Venezuela."

O consumo de combustível foi reduzido em 28% entre agora e dezembro, o de eletricidade passou por um corte de dimensão similar, e as importações, 15%, ou US$ 2,5 bilhões (cerca de R$ 8,2 bilhões), em uma economia centralizada onde 17 centavos de cada dólar da produção econômica consistem de importações.

Mas a escassez paralisante, a inflação galopante e uma economia que deve encolher 10% este ano forçaram o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, a realizar cortes. De acordo com dados internos da companhia petrolífera estatal PDVSA, vistos pela Reuters, o fornecimento de petróleo para Cuba se reduziu um quinto em comparação com o ano passado.

Há 15 anos a Venezuela fornece quantias não especificadas de dinheiro e cerca de 90 mil barris de petróleo por dia - metade das necessidades energéticas de Cuba. Havana, em troca, vendeu serviços médicos e de outros profissionais a Caracas. O auxílio venezuelano ajudou a tirar Cuba do buraco negro econômico depois do término dos subsídios soviéticos em 1991.

"Nas condições atuais, o produto interno bruto (cubano) vai mergulhar em território negativo este ano e cair 2,9% em 2017", diz Pavel Vidal, ex-funcionário do banco central de Cuba que agora é professor da Pontifícia Universidade Javeriana de Cali, na Colômbia. "Se as relações com a Venezuela desmoronarem completamente, o PIB poderia cair 10%."

Embora o auxílio venezuelano seja uma fração da ajuda soviética, a menção ao "período especial" que se seguiu à queda do Muro de Berlim provoca memórias traumáticas em Cuba. Muitos se lembram de períodos de escassez tão severos que comiam gatos de rua. Karina Marrón, vice-diretora do jornal oficial "Granma", advertiu este mês sobre a possibilidade de protestos de rua semelhantes aos de 1994.

"Está se formando a tempestade perfeita... esse fenômeno do corte no combustível, do corte na energia", disse Marrón à União de Jornalistas Cubanos. "Este país não pode suportar outro 93, outro 94."

As chamadas brigadas de resposta rápida, formadas na década de 1990 para reprimir a agitação social, estão de volta em estado de alerta, de acordo com um integrante da brigada que pediu para não ser identificado.

ABERTURA DE MERCADO

Para Castro, a desaceleração é um duro golpe para as limitadas reformas orientadas ao mercado, iniciadas sob sua liderança, especialmente a liberalização, planejada há muito tempo, do peso, o que requer um confortável colchão de reservas estrangeiras.

Mas as empresas estrangeiras esperam que isso possa acelerar a abertura econômica. "Os problemas da Venezuela aumentam a chance de reformas cubanas. Este governo só age quando tem que agir", diz um investidor espanhol na ilha.

Uma complicação reside na forma como o governo distribui recursos.

Cuba depende intensamente dos turistas, que, em sua maioria, esperam hotéis com eletricidade e ar-condicionado. Enquanto isso, cerca de 500 mil pessoas, ou 10% da força de trabalho de Cuba, estão empregadas em restaurantes, pousadas e outras empresas privadas recentemente autorizadas, que precisam de energia para realizar seu negócio.

Castro insiste que os usuários residenciais serão poupados de cortes de energia, por enquanto, enquanto Marino Murillo, que dirige a comissão de reformas do Partido Comunista, diz que setores de moeda forte, como o turismo e o níquel, seriam poupados.

Outro problema é que outros países para onde Cuba exporta serviços médicos, como Argélia, Angola e Brasil, também devem reduzir gastos. Em 2014, os serviços médicos renderam a Cuba cerca de US$ 8 bilhões (cerca de R$ 26,2 bilhões), ou 40% das exportações.

"Não podemos negar que haverá algum impacto, inclusive pior do que o atual, mas estamos preparados", disse Castro.

Analistas sugerem que o aviso de Castro pode servir, em parte, para esvaziar expectativas após a flexibilização das sanções dos EUA. Certamente, um retorno total à austeridade do estilo do período especial parece improvável, já que Cuba tem fluxos de renda mais diversificados, de aumento das remessas, serviços médicos, turismo, em um setor privado nascente.

No entanto, "a maioria [em Cuba] ainda é muito dependente dos salários estatais, que agora valem um terço do que valiam em 1989, em termos reais", disse o professor Vidal. "[Eles] estão em uma situação de extrema vulnerabilidade."

Tradução de DENISE MOTA


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