Folha de S. Paulo


Vice de Hillary acena à classe média, mas desagrada esquerda democrata

A oficialização do senador Tim Kaine (Virgínia), 58, como vice de Hillary Clinton pode ser o melhor ou o pior dos mundos, dependendo de quem vem a resposta na convenção democrata.

No discurso em que aceitou a candidatura nesta quarta (27), o político até então de pouca expressão nacional tentou defender sua causa.

Tido como gentil no trato, esforçou-se para provar que é bom de briga e encarnou o "cão de ataque", papel que em geral cabe ao número dois das chapas presidenciais. "Confio à Hillary a vida do meu filho. Sabe em quem não confio? Hmmm, imagine. Donald Trump. Donald Trump", disse.

Saul Loeb/AFP
O candidato democrata a vice dos EUA, Tim Kaine, discursa na convenção do partido na Filadélfia
O candidato democrata a vice dos EUA, Tim Kaine, discursa na convenção do partido na Filadélfia

Em seguida, caçoou do presidenciável republicano imitando sua voz: "Acredite em mim!".

Continuou no personagem: "Vai ser ótimo, acredite em mim! Vamos construir um muro e fazer o México pagar por ele, acredite em mim! Não há nada de suspeito na minha declaração do Imposto de Renda, acredite em mim! [Trump se recusou a divulgá-la]."

Fora do modo de ataque, Kaine falou da experiência como ex-prefeito, ex-governador e agora senador —ele é um dos 20 americanos a acumular os três cargos.

Advogado formado por Harvard, citou seu trabalho, no passado, contra "firmas imobiliárias que tratam pessoas injustamente" —alfinetada no presidenciável republicano, Donald Trump, que enriqueceu no setor.

E lembrou do ano em que passou com missionários em Honduras, onde ensinou carpintaria a crianças e aprendeu espanhol. Num aceno ao eleitorado latino, misturou idiomas para elencar seus valores ("fe, familia y trabajo" e louvar a parceira: "Hillary and I are compañeros del alma".

Esse versão gente boa de Kaine, contudo, está longe de ser unanimidade. Para quem esperava um candidato à esquerda de Hillary, o vice está mais para um republicano no armário.

O site Progressive Punch, que mede quão progressista é um senador a partir de seu histórico de votações, lhe dá nota F e o 40º lugar entre os cem titulares da Casa. Quatro colegas cogitados como vice estão acima: Elizabeth Warren (2º), Cory Booker (3º), Sherrod Brown (6º) e Bernie Sanders (10º).

É visto como amigável a Wall Street e já defendeu a Parceria Transpacífico (TPP), acordo comercial alçado a bicho-papão da convenção por estrangular empregos americanos –cartazes inserem suas iniciais na placa de proibido.

Católico, em 2005 falou de sua oposição religiosa ao aborto e sugeriu abstinência para reduzir a prática. Opõe-se à pena de morte, mas, como governador de Virgínia (2006-10), concedeu clemência a um condenado e executou 11.

Não compensa a alegada falta de carisma da presidenciável. Ele próprio diz ser "um tédio". O ex-vice Al Gore já brincou que Kaine "é tão entediante que seu codinome no Serviço Secreto é Tim Kaine".

RECEPÇÃO MORNA

Seu discurso, logo após o apelo do ex-prefeito de Nova York Michael Bloomberg ao eleitorado sem filiação partidária, teve recepção morna para a média da noite de quarta e foi praticamente igual à sua primeira aparição com Hillary, em Miami, no sábado (23).

Porta-voz de Hillary, Brian Fallon tentou apresentar Kaine à Folha como o vice dos sonhos, "sempre comprometido com causas sociais". Seu currículo pró-direitos civis é coerente. Como advogado na Virginia, seu primeiro caso, sem honorários, foi ajudar uma mulher que havia sido rejeitada em um apartamento por ser negra.

O próprio estima ter dedicado 75% da carreira a batalhas legais por moradias a preços acessíveis, um dos grandes gargalos dos EUA. No comício de Miami, Hillary lembrou que seu vice pressionou por maior controle de armas em seu Estado, que abriga a sede da Associação Nacional do Rifle (NRA, na sigla em inglês). "Por trás deste sorriso, tem uma espinha de aço. Pergunte à NRA", disse.

Não é só o sorriso que cativou a democrata: a Virginia é um Estado decisivo nas eleições, por não ter preferência definida por republicanos ou democratas. Senador popular, Kaine na chapa é um cabo eleitoral de peso lá.

E, filho do dono de uma lojinha em Kansas City (Missouri), pode estabelecer uma cobiçada conexão com a classe média branca —a mesma que Trump vê como seu feudo eleitoral.


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