Folha de S. Paulo


Milícias tentam frear avanço do Estado Islâmico em territórios da Líbia

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Era na rotatória de Zaafran, em Sirte, que o Estado Islâmico costumavam matar pessoas acusadas de espionar ou de não crer em Deus.

Os condenados vestiam macacão laranja e eram decapitados com uma espada ou mortos com um tiro na cabeça. Depois, crucificado em um andaime, o cadáver ficava exposto durante dias.

Agora, a região de Zaafran está sob poder das milícias líbias da cidade de Misrata, apoiadas pelo governo de acordo nacional do país. Os extremistas do EI estão sitiados em Sirte, no centro de convenções Ouagadugu, construído pelo ditador Muammar Gaddafi (1942-2011) em sua cidade natal para receber líderes mundiais.

Em 5 de maio, quando começou a ofensiva, eram 2.000 extremistas na cidade. Na última sexta (22), não passavam de 400.

Entre as forças que lutam contra o EI estão 300 homens das brigadas salafistas, que seriam considerados terroristas e barrados no aeroporto de muitos países ocidentais. Tal como os extremistas do EI, os salafistas seguem uma versão fundamentalista do islã, querem voltar aos primórdios da religião e emular o que fazia o profeta Maomé.

"Lutamos contra o Daesh (acrônimo em árabe do EI) porque eles não seguem o verdadeiro islã", diz o salafista Ayman Gliwan, 31. "Nós também queremos implementar a sharia (lei islâmica), mas ensinando as pessoas, instruindo. O Daesh quer fazer isso usando a violência."

Dois integrantes das brigadas salafistas deram entrevista à Folha. Foi a primeira vez que falaram à mídia desde o início da ofensiva em Sirte.

Os salafistas não conversam com mulheres desconhecidas, não dão entrevista nem admitem ser fotografados. Para conversar com a reportagem, estabeleceram condições. A repórter tinha de estar completamente coberta com véu e roupas soltas, e permanecer no carro.

O que é Estado Islâmico

O tradutor ficou entre o soldado salafista e a repórter, a uma distância considerável. Ele nunca olhou para ela.

"Não somos terroristas, nunca forçamos ninguém a ir à mesquita nem cometemos atos violentos. Somos apenas islamistas", disse Gliwan.

DIVERGÊNCIAS

A Líbia não padece da divisão sectária entre xiitas e sunitas que exacerba os conflitos na Síria e no Iraque. A enorme maioria da população é sunita, ramo majoritário no islã. Mas há divergências profundas entre leste e oeste, islamitas e seculares.

Após Gaddafi cair, em 2011, o país viveu um breve período de paz e mergulhou no caos. Um governo se fixou em Tobruk (leste), aliado a Benghazi, e outro em Trípoli, com apoio de Misrata (oeste).

Em março, assumiu o governo de acordo nacional, apoiado pela ONU, mas sem poder efetivo. Na prática, milícias locais dominam o país.

Estado Islâmico - Entenda a facção terrorista

EUA e Reino Unido apoiam Misrata contra o EI em Sirte. Mas, em Benghazi, Misrata luta com extremistas do Ansar al Sharia contra o general Khalifa Haftar. Potências ocidentais apoiam Haftar, enquanto grande parte dos líbios o acusa de tentar estabelecer outra ditadura militar.

O Estado Islâmico se aproveitou da confusão e se estabeleceu em agosto de 2015 em Sirte e arredores, controlando cerca de 200 km na costa do país. Calcula-se que haja 3.000 extremistas em toda a Líbia.

Sirte já teve 80 mil habitantes. Hoje não tem mais de 10 mil. Só milicianos andam nas ruas. As casas estão destruídas, e muitas têm o carimbo do EI na parede: "Escritório de serviços gerais do Estado Islâmico". Quem paga impostos ao EI ganha seu carimbo.

"No começo, apoiamos o Daesh. Eles eram solícitos e nos ajudavam a resolver problemas de terra", conta o lojista Jamal Azerga, 50. "Mas aí começaram a radicalizar. Não se podia fumar senão nos levavam ao escritório da moralidade para receber chibatadas. Minha mulher tinha de usar o niqab (véu que deixa só os olhos à mostra) e nunca podia sair de casa."

Azerga vive sem eletricidade e tem que viajar 200 km de Sirte para comprar comida e remédios. Ele estava com um vizinho que buscava onde vacinar o filho –o sistema de saúde ruiu. "Lutamos contra o EI sozinhos, o Ocidente prometeu ajuda e não nos deu nada", diz o general Mohamed Gnaidi, comandante das operações de inteligência em Sirte.

Os milicianos anti-EI pedem o fim do embargo à venda de armas para a Líbia. EUA e outros países resistem, cientes do risco de armar milícias. Resta saber quando, e se, a Líbia voltará a ter um governo e ser um país.


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