Folha de S. Paulo


EUA têm de ajeitar própria casa antes de mudar outros países, diz Trump

Donald Trump disse na quarta-feira (20), na véspera de aceitar a nomeação a candidato à Presidência dos EUA pelo Partido Republicano, que, caso seja eleito, não pressionará a Turquia ou outros aliados autoritários que realizam expurgos de seus adversários políticos ou reprimem as liberdades civis.

Para ele, os Estados Unidos precisam "arrumar a própria casa" antes de tentar modificar o comportamento de outros países. "Acho que não temos o direito de passar sermões", disse Trump em entrevista que deu em uma suíte num hotel no centro de Cleveland, enquanto acompanhava as notícias da Convenção Nacional Republicana transmitidas pela televisão.

"Veja o que está acontecendo em nosso país. Como podemos dar aula de moral quando temos aqui gente atirando a sangue frio em policiais?"

Durante uma conversa de 45 minutos, Trump explicitamente levantou questões novas sobre seu compromisso em defender aliados da Otan automaticamente caso sejam atacados, dizendo que ele primeiro verificaria as contribuições feitas por esses países à aliança.

Sondagem The New York Times/CBS -

Ele voltou a ressaltar o enfoque nacionalista de linha dura que marca sua candidatura implausível, descrevendo como forçará aliados a arcar com custos de defesa que há décadas são pagos pelos Estados Unidos, cancelar tratados vigentes há anos que ele vê como sendo desfavoráveis e redefinir o que significa ser parceiro dos Estados Unidos.

Trump declarou que o resto do mundo aprenderá a se adaptar à sua abordagem. "Eu preferiria poder manter" acordos já existentes, disse ele, mas apenas se os aliados dos EUA deixarem de tirar vantagem do que ele descreveu como sendo uma era de generosidade americana que deixou de ser financeiramente viável.

Dando uma prévia do discurso que fará perante a convenção na noite de quinta-feira, Trump disse que vai reforçar o tema da "América em Primeiro Lugar", seu grito de guerra dos últimos quatro meses, e que está disposto a anular o Nafta (Tratado Norte-Americano de Livre Comércio), com o México e o Canadá, se não puder negociar termos radicalmente melhores.

Ele chegou a colocar em dúvida se vai, como presidente, prorrogar automaticamente as garantias de segurança que dão aos 28 membros da Otan a certeza do apoio total das forças armadas americanas em sua defesa.

Por exemplo, perguntando sobre as atividades ameaçadoras da Rússia, que inquietam os pequenos países bálticos, alguns dos mais recentes a engrossar as fileiras da Otan, Trump afirmou que, se a Rússia os atacar, ele decidirá se os EUA irão socorrê-los apenas depois de verificar se esses países "cumpriram suas obrigações conosco". E acrescentou: "Se eles cumprirem suas obrigações conosco, a resposta é 'sim'."

Trump disse estar satisfeito porque a polêmica em torno das semelhanças entre trechos de um discurso feito por sua mulher, Melania, na convenção republicana na noite de segunda-feira e o discurso proferido por Michelle Obama oito anos atrás parece estar perdendo força. Olhando em retrospectiva, disse ele, teria sido melhor explicar um dia antes o que ocorreu –que uma assessora incorporou as frases ao discurso de sua mulher.

Quando perguntado que impressão ele espera que as pessoas levem para casa da convenção, Trump respondeu: "O fato de que as pessoas gostam muito de mim".

Trump reconheceu que o tratamento que ele pretende dar aos aliados e adversários dos Estados Unidos difere radicalmente das tradições do Partido Republicano –cujos candidatos, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, têm quase todos defendido um enfoque internacionalista no qual os EUA é o guardião da paz, "a nação indispensável".

"Hoje não é 40 anos atrás", afirmou Trump, rejeitando comparações entre sua abordagem às questões de ordem pública e globais e a de Richard Nixon. Reiterando sua ameaça de chamar de volta ao país as tropas americanas estacionadas em vários lugares do mundo, ele explicou: "Estamos gastando uma fortuna com as forças armadas para perder US$ 800 bilhões", citando o que afirmou serem as perdas comerciais dos EUA. "Não me parece muito inteligente."

Ele repetidamente definiu os interesses globais dos EUA em termos quase puramente econômicos. Os papéis do país na manutenção da paz, como provedor de dissuasão nuclear contra adversários como a Coreia do Norte, como defensor dos direitos humanos e protetor das fronteiras de seus aliados, foram rapidamente reduzidos a questões de benefício econômico para os Estados Unidos.

Nenhum candidato presidencial nos tempos modernos ordenou as prioridades americanas desse modo, e, mesmo na convenção republicana, vários oradores que discursaram até agora defenderam uma política muito mais intervencionista, que lembra mais o partido de George W. Bush que o de Trump.

Os comentários de Trump sobre a crise na Turquia foram reveladores porque foram feitos em um momento em que ele podia claramente visualizar-se na Casa Branca, lidando com um levante que poderia ameaçar um aliado americano crucial no Oriente Médio. Os Estados Unidos têm uma grande base aérea em Incirlik, na Turquia, a partir da qual lança ataques ao Estado Islâmico e onde mantém uma força de drones e cerca de 50 armas nucleares.

Robyn Beck/AFP
Delegates hoist a sign of support during the roll call of states on the second day of the Republican National Convention on July 19, 2016 at Quicken Loans Arena in Cleveland, Ohio. About 50,000 people are expected in Cleveland this week for the Republican National Convention, at which Donald Trump is expected to be formally nominated to run for the US presidency in November. / AFP PHOTO / Robyn BECK
Delegada segura cartaz em apoio a Trump durante 2º dia da convenção Republicana, em Cleveland

Trump se derramou em elogios ao presidente Recep Tayyip Erdogan, o líder turco cada vez mais autoritário, mas que foi democraticamente eleito. "Dou grande crédito a ele por ter conseguido controlar aquela situação", disse Trump, falando da tentativa de golpe de Estado na Turquia na noite de sexta-feira (15). "Algumas pessoas dizem que [a tentativa de golpe] foi encenada, sabe. Eu não acho que tenha sido."

Perguntado se Erdogan estaria aproveitando o golpe para promover um expurgo de seus inimigos políticos, Trump não exortou o líder turco a pautar-se pelas leis ou pelos padrões ocidentais de justiça. "Quando o mundo vê como os Estados Unidos está mal e nós começamos a falar em liberdades civis, acho que não somos um mensageiro muito bom", ele disse.

A administração Obama se absteve de tomar qualquer medida concreta para pressionar a Turquia, temendo pela estabilidade do país, um aliado crucial em uma região volátil. Mas o secretário de Estado, John Kerry, já emitiu vários comunicados exortando Erdogan a pautar-se pelas leis.

Trump não fez qualquer pedido semelhante por moderação à Turquia ou países como ela. Mas seu argumento sobre a autoridade moral dos EUA não é novo: Rússia, China, Coreia do Norte e outros países autocráticos frequentemente citam a violência e desordem nas ruas dos EUA para justificar suas próprias práticas e argumentar que os EUA não têm base para criticá-los.

Trump se disse convencido de que poderia persuadir Erdogan a intensificar seu esforço para combater o Estado Islâmico. Mas a administração Obama tem se chocado diariamente com a realidade de que os curdos –uma das forças mais eficazes que os EUA estão apoiando no combate ao EI– estão sendo atacados pela Turquia, que teme que eles criem um país separado.

Perguntado como ele resolveria esse problema, Trump fez uma pausa e então respondeu: "Reuniões".

Ele falou em financiar um grande movimento de reforço das forças armadas, começando com a modernização do arsenal nuclear dos EUA. "Temos muitas armas obsoletas", ele disse. "Temos armas nucleares que nem sabemos como funcionam."

A administração Obama tem um grande programa de modernização em andamento voltado a tornar o arsenal nuclear mais confiável, embora tenha começado a confrontar o custo imenso da modernização de bombardeiros e submarinos nucleares. Essa conta estarrecedora, estimada em US$ 500 bilhões ou mais, vai chegar à mesa do próximo presidente.

Trump utilizou o slogan "América em Primeiro Lugar" ("America First") em uma entrevista anterior ao "New York Times", mas na quarta-feira insistiu que não quer dizer com o slogan a mesma coisa que Charles Lindbergh e outros isolacionalistas queriam, antes da Segunda Guerra Mundial.

"Para mim, 'America First' é um termo moderno, novo em folha", ele explicou. "Nunca o relacionei ao passado." Perguntado o que o slogan significa para ele, Trump fez uma pausa e então respondeu: "Vamos cuidar deste país primeiro, antes de nos preocuparmos com o resto do mundo."

Tradução de CLARA ALLAIN


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