Folha de S. Paulo


Insatisfeita, Melania Trump descartou discurso original para convenção

Foi o maior discurso da vida de Melania Trump, e o marido dela, Donald, queria que fosse perfeito.

A campanha de Trump encarregou dois famosos redatores de discursos políticos –que ajudaram a escrever importantes peças de oratória, como o discurso de George W. Bush aos norte-americanos em 11 de setembro de 2001– de apresentar Melania Trump, ex-modelo nascida na Eslovênia, ao país na noite de abertura da Convenção Nacional do Partido Republicano.

As coisas não saíram como planejado, e o discurso dela eclipsou boa parte da ação na convenção de Cleveland, na qual os delegados indicaram Trump formalmente como candidato do partido à Presidência na noite de terça-feira (19).

Os redatores, Matthew Scully e John McConnell, enviaram a Melania Trump um rascunho do discurso, para sua aprovação. Semanas se passaram e eles não tiveram resposta.

Na Trump Tower, o que aconteceu foi que Melania decidiu que não se sentia confortável com o texto original, e começou a desmontá-lo, mantendo apenas uma pequena fração.

O plano silencioso da mulher do candidato para retomar o controle do discurso e torná-lo mais pessoal deflagrou o momento mais embaraçoso da convenção: uma repetição literal de frases e o empréstimo de temas evocados no discurso de Michelle Obama na convenção do Partido Democrata, oito anos atrás.

O discurso de Melania foi ridicularizado instantânea e pesadamente, por democratas e republicanos na mesma medida, e prejudicou o que deveria ter sido um dos pontos altos da convenção.

De acordo com as informações disponíveis, foi o tipo de fiasco que deveria ter sido fácil evitar, cometido diante de uma audiência televisiva de 23 milhões de espectadores, e expôs as fraquezas de uma organização que vem há muito desdenhando as salvaguardas de uma campanha presidencial moderna –por exemplo o uso de software gratuito que detecta plágios.

"Não deveria ter acontecido", disse Matt Lattimer, redator de discursos para o presidente George W. Bush na Casa Branca. "Era um discurso fácil, um discurso de vitória: uma imigrante bem sucedida e atraente falando sobre seu marido."

Ninguém parecia mais espantado que os Trump, que chegaram a Nova York na manhã de terça-feira, vindos de Cleveland, e se viram no centro de uma bizarra disputa sobre autenticidade, plágio e uma questão complicada: como é que a mulher do candidato republicano tomou de empréstimo trechos de um discurso da atual primeira-dama democrata?

Melania passou a maior parte da terça-feira longe das câmeras, enquanto seu marido expressava sua raiva e frustração ao longo do dia.

O relato de como um discurso redigido por profissionais foi transformado na problemática versão que ela proferiu na noite de segunda-feira na Quicken Loans Arena se baseia em entrevistas com mais de uma dúzia de pessoas envolvidas com a campanha de Trump ou próximas a ela. Muitas falaram sob a condição de que seus nomes não fossem mencionados, por estarem mencionando detalhes que deveriam ser confidenciais.

IMPROVISO

A história reforça temas que vieram a dominar a campanha de Trump e continuam desde as primárias, apesar dos esforços de sua equipe para promover mudanças: uma estrutura de campanha deliberadamente mínima, um estilo que privilegia o improviso e mais confiança nos instintos do candidato do que nos conselhos de experientes especialistas políticos como Scully e McConnell.

Os dois redatores originais do discurso não estavam cientes de o quanto este havia sido mudado até que, em companhia de todo o resto do país, viram Melania pronunciá-lo na noite de segunda-feira.

No horário nobre, ela relatou uma sucessão de lições de vida –a de que é importante "manter sua palavra" e "sonhar e trabalhar pelo que você sonha"– e fez elogios à "integridade, paixão e inteligência de seus pais", na mesma sequência e usando em boa parte a mesma linguagem que Michelle Obama empregou em 2008.

Como a primeira-dama, Melania explicou que desejava transmitir essas lições aos seus filhos e às crianças do planeta. E como Michelle, ela ofereceu uma invocação etérea às aspirações que não têm limites quando vêm acompanhadas de determinação.

Em uma série de explicações que foram evoluindo ao longo do dia, assessores e aliados de Trump descartaram o episódio como uma distração trivial, oscilando entre negar que o discurso tivesse plagiado as palavras de Michelle e atribuir a culpa à mídia.

"Noventa e três por cento do discurso é completamente diferente", declarou o governador Chris Christie, de Nova Jersey. Paul Manafort, presidente do conselho da campanha de Trump, estimou o número de palavras suspeitas em 50. "E isso inclui 'e', 'o' e coisas assim", ele disse na terça-feira.

Em todo o país, operadores políticos e redatores de discursos republicanos reagiram boquiabertos, com espanto e palavrões, à desorganização que permitiu que um episódio como esse ocorresse.

"É como se um cara estivesse atravessando um rio de canoa e desse um tiro no fundo do próprio barco", disse Stuart Stevens, que escreveu discursos para Mitt Romney e a mulher dele, Ann, na campanha presidencial de 2012.

Em entrevistas, redatores de discursos republicanos, alarmados, delinearam as etapas de escrutínio formal, aparentemente desdenhadas pela campanha de Trump, que se aplicam a praticamente todos os esboços de um discurso importante em convenção presidencial.

Descreveram palavra por palavra os esforços de revisão por uma equipe de especialistas dedicada a isso, e por um software projetado para capturar casos de plágio. Diversos programas desse tipo, como o DupliChecker, estão disponíveis online gratuitamente.

Foi Jared Kushner, genro de Trump e um de seus principais assessores, que selecionou Scully e McConnell para escrever o discurso –e elogiou seu primeiro esboço.

EX-BAILARINA

Mas Melania decidiu que revisaria o texto, e em dado momento se voltou a uma pessoa de sua confiança: Meredith McIver, ex-bailarina de Nova York, formada em letras, que trabalhou em alguns dos livros de Trump, entre os quais "Think Like a Billionaire". Não se sabe até que ponto McIver influenciou o produto final, e ela não respondeu a um e-mail na terça-feira.

A pesquisa para o discurso, ao que parece, as conduziu a discursos preferidos por cônjuges de candidatos em convenções anteriores.

A direção da campanha de Trump se recusou a informar quem, se alguém, entre seus principais dirigentes leu ou revisou o discurso.

Mas quando Melania e sua equipe concluíram a revisão, virtualmente tudo que restou do original foi uma introdução e um trecho que incluía a frase "uma campanha nacional jamais vista".

Para muitos republicanos, esse pareceu ser um lapso inevitável de um candidato que não só rejeitou a estrutura tradicional de uma grande campanha política como zombou dela, definindo-a como desperdício de dinheiro.

Seus lemas de campanha, "América Primeiro" e "vamos tornar os Estados Unidos grandes uma vez mais", ecoam Pat Buchanan e Ronald Reagan. Os recursos gráficos usados na campanha são obtidos via crowdsourcing no Twitter e Reddit, por um assessor que anteriormente administrava o clube de golfe de Trump em Westchester.

Os erros vêm se acumulando. Na metade do ano passado, Donald Trump postou no Twitter seu retrato sobreposto a uma foto da Casa Branca e uma imagem que, foi constatado, mostrava soldados da Waffen-SS na Segunda Guerra Mundial.

Mas o erro da noite de segunda-feira doeu especialmente porque todo mundo estava assistindo.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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