Folha de S. Paulo


Depoimento

Vi uma data que celebra uma libertação virar um dia de dor

"Nice é linda. Vá ao centro velho, é imperdível", aconselhou a vizinha de poltrona do voo que pousaria às 19h do dia 14 de julho, feriado nacional da França, em Nice.

Cerca de três horas depois, à beira-mar, no centro velho, eu assistia na promenade des Anglais com meu namorado e dois amigos franceses aos fogos que celebravam a data.

O público era de famílias, principalmente. Muitos jovens e crianças. Assim que terminaram, fomos comer. Cinco minutos depois já estávamos no bar El Mercado, uma mistura de restaurante e pub, balcão e mesas fixas ao fundo, muita gente jovem.

Não fazia nem um minuto que sentáramos no balcão e percebemos muita pessoas olhando pra fora, tumulto, quando um dos meus amigos nos pediu para ir para o fundo do bar, atrás da pilastra.

.

Conversávamos com outros franceses que buscavam informações em redes sociais sobre o que ocorria quando vi gente correndo na rua.

O pânico começou: clientes correndo para a parte de trás do bar, a sensação de que devíamos correr para salvar nossas vidas. Na cozinha, fomos para a última porta, a mais distante da entrada. Sem porta de acesso pra fora. Era o fim da linha.

Éramos seis ou sete pessoas. A menina do meu lado, desesperada, chorava muito. Shhhh. Temos que fazer silêncio. Como se fôssemos caçados. Não perguntei a ninguém, mas era óbvio que o que veio na cabeça de todos eram atiradores, terroristas que entram com fuzil para matar. Imaginei um deles entrando naquele cubículo, tirar nossa vida seria fácil.

Cinco minutos depois, bateram na porta e nos acalmaram. Saímos, sem informação. A maior parte do bar estava na cozinha, mas tinha gente na frente também.

E o boca a boca ia dizendo que não era nada, que era um louco que jogou fogos de brincadeira em alguém.

Aos poucos, soubemos de um caminhão, do atropelamento, dos mortos. Mas não podíamos sair, o que nos esperaria? Estávamos encarcerados na cozinha, cerca de 50 pessoas tentando acalmar umas às outras. Chorando. Gente rindo e fazendo piada. Esperando sem saber o quê.

Duas vezes tivemos alarmes falsos: todos correndo novamente para a cozinha, tentando se esconder no fogão ou sob os armários. Era o pânico recomeçando.

Tive muito tempo para pensar que ia morrer. Tempo de olhar as facas grandes na parede da cozinha e cogitar pegar (qual a chance de eu conseguir manejar uma dessas?). Tempo para pensar que "quando alguém chegasse" eu ia me esconder sob o armário maior. Ou que ia cair no chão em tal ângulo me fingindo de morta, com o sangue de outras pessoas para poder sobreviver (é macabro).

Tempo para pensar na família e nas pessoas que amo. Tempo pra só pensar que precisava escapar dali mas não tinha como, ia morrer como todos os franceses que choravam e riam como eu.

Foram 40 minutos até que, no boca a boca, nos convencíamos que estava tudo bem.

Um sujeito no bar dizia que podíamos voltar para casa. Saímos aos poucos.

As ruas, antes cheias num clima de fim de ano em Copacabana, estavam vazias, exceto por poucos grupos que corriam, unidos, para longe.

Vi no caminho para casa carrinho de bebê revirado, mesas e cadeiras jogadas, chinelos e pertences para trás. Vi a charmosa Nice desesperada e vi uma data que celebra uma libertação virar um dia de lamento e dor.


Endereço da página:

Links no texto: