Folha de S. Paulo


Ataques a policiais preocupam negros proprietários de armas

No Texas, é legal portar uma arma de fogo visível, e Yafeuh Balogun muitas vezes caminha pelas ruas com uma espingarda Mossberg 500, calibre 12, pendurada do ombro. Ele patrulha o bairro em que vive em Dallas e promove os benefícios da posse legal de armas junto a pessoas que, como ele, são negras.

Questões de raça, policiamento e direito à posse de armas, porém, se combinaram em uma mistura volátil depois de dois incidentes em que policiais abriram fogo contra homens que eles acreditavam estar portando armas, nos últimos dias, e de um ataque que resultou na morte e ferimento de policiais por atiradores ocultos, durante uma manifestação na quinta-feira (7) à noite.

Balogun disse que membros de seu Huey P. Newton Gun Club, cujo nome celebra um dos fundadores do Partido Pantera Negra, estavam presentes nos protestos em Dallas na quinta-feira carregando suas armas, algo que costumam fazer para "garantir a segurança da manifestação".

A polícia deteve um membro do clube que estava armado, Reign Ifa, durante a manifestação, disse Balogun, mas ele insistiu que o colega nada tinha a ver com o ataque aos policiais.

A presença de armas de fogo longas portadas abertamente por organizações como a de Balogun causou certa inquietação durante as manifestações da quinta-feira em Dallas. A polícia divulgou uma foto de uma pessoa vestindo camiseta camuflada e carregando uma arma no ombro, descrevendo-a como "suspeita". Mas foi constatado que o homem nada teve a ver com o ataque.

O ataque aos policiais, disse Balogun, não deveria ser motivo para os negros abandonarem as armas que adquiriram legalmente.

"Não aprovo a morte de pessoa alguma, negra, branca, marrom, pobre", disse Balogun, acrescentando que ainda assim considerava a violência contra os policiais como resposta a "anos e anos e anos de injustiça".

Balogun disse que havia ficado atônito, horas antes, ao ouvir que um policial de Minnesota matou a tiros um negro que, de acordo com testemunhas, havia informado ao policial durante uma parada de rotina no trânsito que estava portando legalmente uma arma.

"Isso me apavora", disse Balogun, 32. "Digo aos negros aqui que deveriam portar armas legalmente, porque isso lhes dará mais oportunidade de se protegerem, e talvez a lei os respeite mais".

Agora surgem questões raivosas sobre a equidade racial na aplicação da segunda emenda à Constituição norte-americana [que garante o porte de armas]. E os assassinatos de policiais só serviram para aprofundar as fissuras entre aqueles que defendem a polícia e aqueles que criticam seus abusos.

A morte de Philando Castile em Falcon Heights, um subúrbio de St. Paul, Minnesota, surge em um momento no qual mais negros parecem encarar a posse de armas como forma de se protegerem contra violências. As comunidades negras dos Estados Unidos sofrem muito mais que as brancas por conta da violência armada, mas 54% dos negros afirmam que as armas serviram mais para proteger do que para colocar em risco a sua segurança pessoal, de acordo com pesquisa da Pew Research em 2014. Dois anos antes, a proporção era de 29%.

Ainda assim, os negros proprietários de armas enfrentam percepções negativas.

"As coisas estão chegando cada vez mais perto do que sabemos ser um estereótipo onipresente sobre a negritude e a criminalidade", disse Robin Wright, pesquisadora do Instituto Kirwan, Universidade do Ohio, e estudiosa do desvio implícito nas percepções. "Se você vê uma pessoa negra portando uma arma, não presume que isso seja legal".

Em termos mais abruptos: "A cor da pele é sinônimo de crime", disse Jasmine Rand, advogada de um homem que foi baleado pela polícia na Flórida e depois morreu.

William Widmer/New York Times
Protesters took to the streets of Baton Rouge, La., on Thursday over the shooting of Alton B. Sterling, a black man, during an encounter with two police officers on Tuesday. Credit William Widmer for The New York Times
Manifestantes na cidade de Baton Rouge, em Louisiana, protestaram contra morte de Alton B. Sterling

Mesmo Castile havia refletido sobre os perigos de ser um negro proprietário de arma de fogo, horas antes de sua morte, contou sua mãe, Valerie, em entrevista à rede de notícias CNN. Ele estava na casa dela discutindo a questão do porte legal de armas ocultas com a irmã, que também tinha porte de armas, disse Valerie Castile.

Ela recorda que sua filha disse: "Sabe o quê? Nem carrego minha arma, porque tenho medo de que eles atirem primeiro e façam perguntas depois".

Muitas vezes, em casos nos quais a polícia abate pessoas a tiros, o porte de uma arma pela vítima passa a ser considerado como justificativa para o ataque. Mas especialistas e ativistas afirmam que isso desconsidera um ponto importante: se a pessoa atacada estava ou não fazendo algo de ameaçador com a arma.

Embora não existam dados sobre a incidência de ataques de policiais a brancos e negros legalmente armados nos Estados Unidos, os especialistas em desvio implícito dizem que os estereótipos negativos sobre os negros sugerem que eles enfrentam maior risco de ter suas ações e intenções interpretadas erroneamente quando estão portando armas.

A questão tem longas raízes históricas. Já no século 17 as colônias britânicas proibiam expressamente os negros e indígenas de portar armas de fogo. No período posterior à guerra civil dos Estados Unidos, juízes e xerifes administravam a concessão de porte de armas de maneira discriminatória em termos raciais. E quando o Legislativo da Califórnia proibiu o porte de armas visíveis nos anos 60, foi em resposta ao porte de armas por militantes do Partido Panteras Negras diante do Capitólio estadual.

Os defensores do porte de armas pelos negros, no entanto, dizem que isso não deveria assustá-los e convencê-los a não andar armados.

"Creio que existem realidades sociais que se fazem sentir quando você é um homem negro e porta armas, ocultas ou visíveis", disse Philip Smith, fundador e presidente da National African American Gun Association (Associação Nacional de Armas dos Afroamericanos), que congrega negros proprietários de armas. "Você não pode se preocupar com isso. Se eu fosse me preocupar com o que todos pensam quando ando com uma arma na cintura, enlouqueceria".

Balogun ajudou a fundar seu clube de armas em Dallas dois anos atrás a fim de organizar e educar os negros quanto ao tema da propriedade de armas. Quando os membros portam armas visíveis, tentam fazê-lo em grupos, ou diante de câmeras. Isso é para garantir que haja testemunhas capazes de afirmar que eles não tinham propósitos malévolos.

"A ideia de um negro carregando uma arma de fogo apavora os Estados Unidos", ele disse. "As pessoas automaticamente temem que estejamos buscando alguma forma de vingança. Não estamos. Queremos apenas proteger nossos lares e nossas comunidades".

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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