Folha de S. Paulo


Brexit deve empobrecer dieta e fazer britânicos voltarem a passado insosso

Enquanto o debate central sobre a decisão britânica de romper com a União Europeia trata do futuro político e econômico do Reino Unido, uma preocupação mais prática ronda a mesa dos ingleses.

A saída da UE deve afetar a comida local, com efeitos na qualidade da gastronomia e na segurança alimentar.

Os britânicos já lidam com a fama histórica de terem a pior comida do mundo.

Herdeiros de uma cultura vitoriana que via no prazer algo a ser censurado e das privações do desenvolvimento de uma classe operária em uma ilha de poucos recursos (e castigada pelas guerras), eles ficaram associados à imagem de batatas cozidas servidas com carnes sem tempero, enguias frias em gelatina, tortas rudimentares com vísceras e o fish and chips em jornal pingando óleo.

Alpino
Batata no Reino Unido

O cenário mudou nas últimas décadas, e o aclamado chef francês Joel Robuchon chegou a dizer que Londres havia se tornado a capital mundial da gastronomia.

Antes totalmente amadora, a cozinha local se aperfeiçoou. Além de uma cena de restaurantes cosmopolita e rica, agora por toda a Inglaterra há gastropubs preocupados em fazer comida britânica de alta qualidade. São carnes de caça, enguias preparadas com esmero, tortas de carne e rim suaves e até batatas fritas de forma perfeita com técnicas científicas.

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A comida inglesa amadureceu e pode ser atraente por si só, mesmo que continue causando estranhamento a quem não a conhece.

O que transformou o perfil da comida local foi justamente a influência internacional e a imigração. Os britânicos tomaram gosto pela boa mesa. A Europa mudou o paladar inglês, enriqueceu a gastronomia local —e isso agora é ameaçado pelo Brexit.

Separado da Europa, o Reino Unido pode voltar a uma dieta menos globalizada, menos variada, mais pobre.

A reação ficou aparente na internet, onde piadas mostravam que o país perderia acesso ao vinho e aos queijos franceses, ao azeite e às massas italianas, aos embutidos da Alemanha e da Espanha, a temperos e até mesmo a técnicas que ajudam a tornar o cardápio britânico tão atraente.

A solução para as dificuldades gastronômicas após o Brexit (a saída britânica da UE) pode ser apelar ao humor britânico. Se a gastronomia é ruim, vale lembrar que ela formou a personalidade "sofisticada" dos britânicos, segundo o colunista do "Guardian" Stuart Heritage.

"A comida horrível é exatamente o que fez esse país ser tão grandioso", defendeu.

SEGURANÇA ALIMENTAR

O risco do Brexit vai além do paladar. A escritora inglesa Bee Wilson ressaltou que mais de um quarto das pessoas que trabalham na indústria alimentar britânica é imigrante. Com as fronteiras mais fechadas, pode faltar gente nas cozinhas.

A preocupação de quem estuda a segurança alimentar é ainda maior. O rompimento significa um risco à saúde e à qualidade de vida.

Para o especialista em política alimentar Tim Lang, da City University, o Reino Unido vai enfrentar turbulências em seu sistema de produção e consumo de comida.

Isso porque os britânicos não produzem todos os seus alimentos e dependem de importados. Cerca de 40% de tudo o que se come no Reino Unido chega de fora, sobretudo da Europa continental.

Com a separação e a pressão econômica sobre a libra, os preços dos alimentos devem subir e tornar boas comidas menos acessíveis. A vulnerabilidade lembra os problemas enfrentados durante a guerra, com racionamento e uma dieta pobre e limitada.

Os parâmetros para a separação ainda não foram definidos, e é incerto seu impacto real. O certo é que o Brexit vai afetar a alimentação e pode levar o Reino Unido a um passado nada apetitoso.


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