Folha de S. Paulo


Análise

Revolta das massas reflete perda de código de honra cultural

Qualquer pessoa que passe algum tempo nas regiões da América onde vive a classe trabalhadora (e, imagino, nas do Reino Unido) perceberá como a dependência de drogas e o suicídio estão se alastrando e observará sentimentos de anomia, cinismo, pessimismo e ressentimento.

Parte desse sofrimento decorre da desindustrialização. Há poucos bons empregos disponíveis. Mas dificuldades não constituem exatamente novidade nestes lugares. A vida nunca foi um mar de rosas numa região de minas de carvão, por exemplo.

O que se perdeu também são as instituições sociais e os valores culturais que possibilitavam às pessoas ter respeito próprio em meio às dificuldades –que lhes permitiam dizer "posso não ganhar muito dinheiro, mas as pessoas podem contar comigo. Sou leal, persistente, trabalhador, resiliente, e faço parte de uma boa comunidade."

Todos nós temos uma sensação de como era aquele código de honra da classe trabalhadora, mas, caso você esteja precisando reforçar a memória, recomendo o livro "Hillbilly Elegy", de J.D. Vance, lançado há pouco.

A família de Vance é do Kentucky e de Ohio, e sua descrição da cultura em que ele cresceu é leitura essencial para o momento atual na história.

Ele descreve uma cultura de intensa lealdade ao grupo. As famílias podiam ter milhões de problemas, mas qualquer ato de deslealdade –como, por exemplo, compartilhar segredos pessoais com gente de fora– é sentido agudamente. Essa cultura de lealdade ajuda as pessoas a cuidar dos seus, mas também significa que pode haver hostilidade em relação a quem quiser se mudar de lá e ascender. E pode haver paroquialismo intenso.

"Não gostamos de pessoas de fora", escreve Vance, "nem de pessoas que são diferentes de nós, quer a diferença esteja na aparência delas, seu jeito de agir ou, o mais importante de tudo, seu modo de falar."

É também uma cultura que valoriza a força e resistência física. É uma cultura que valoriza as pessoas dispostas a lutar para defender sua honra. Isso é algo que os progressistas nunca entenderam em relação ao controle de armas de fogo. Os progressistas enxergam nisso uma discussão sobre massacres, mas, para muitas pessoas, armas de fogo representam a capacidade de uma família defender-se sozinha em um mundo perigoso.

É também uma cultura com muito orgulho coletivo. Em minhas viagens, não dá para passar cinco minutos sem que a conversa trate de um time esportivo local. O esporte tornou-se a religião que une as pessoas, algo que lhes dá identidade, valor e solidariedade.

Boa parte desse orgulho é de caráter nacionalista. Vance escreve que seus avós "me ensinaram que vivemos no maior e melhor país do mundo. Esse fato conferiu sentido à minha infância."

Quando morei em Bruxelas, esse tipo de patriotismo pessoal intenso simplesmente não era sentido pelos que administravam a União Europeia, mas sim por muitas pessoas nos Estados membros.

Esse código de honra vem sendo dizimado recentemente. Conservadores argumentam que ele foi dizimado pelas elites culturais cosmopolitas que desprezam os caipiras rurais. Há certa dose de verdade nisso, como demonstram as reações das elites presunçosas ao voto pelo Brexit.

Mas o código de honra também vem sendo destruído pela cultura da meritocracia moderna, que confere status ao indivíduo que trabalha com a mente, desvalorizando a classe de pessoas que trabalham com as mãos.

Acima de tudo, ele vem sendo enfraquecido pelo consumismo desenfreado, pela cultura das celebridades, por fantasias de reality de TV que dizem às pessoas que o sucesso vem em uma explosão instantânea de publicidade, não através de trabalho constante. O sociólogo Daniel Bell argumentou que o capitalismo solaparia a si mesmo porque incentiva valores hedonistas de curto prazo para os consumidores, ao mesmo tempo em que exige valores de autodisciplina de longo prazo dos trabalhadores. Em pelo menos um segmento da sociedade, Bell teve razão absoluta.

Hoje vemos uma divisão na classe trabalhadora entre pessoas em sua maioria mais velhas que são autodisciplinadas, respeitáveis e, com frequência, preconceituosas, e parte de um grupo mais jovem cujos membros são mais desorganizados, trabalham menos, são obcecados com celebridades, mas são também mais tolerantes e abertos ao mundo.

Os eleitores de Trump (e provavelmente as pessoas que votaram pelo Brexit) fazem parte do primeiro grupo. Eles não são pobres: ganham em média mais de US$ 70 mil (R$ 231, 5 mil) por ano. Mas percebem que o mundo de seus netos está se desintegrando rapidamente.

Entre 1945 e 1995, as elites conservadoras e as liberais compartilharam variações da mesma visão de futuro. Os liberais destacavam as instituições multilaterais, enquanto os conservadores enfatizavam o livre comércio. De um jeito ou de outro, o futuro seria global, integrado e multiétnico.

As elites, no entanto, fizeram pressão demais, e agora a história está avançando na direção contrária. As massas menos instruídas têm uma concepção diferente do futuro, uma visão que é mais fechada, coletiva, protetora e segmentada.

O sofrimento delas é indivisível: tensão econômica, fragmentação das comunidades, preconceitos étnicos e perda de status social e valor próprio. Quando as pessoas sentem que seu mundo está desaparecendo, tornam-se alvos fáceis do pensamento mágico, não vinculado a fatos reais, e de demagogos que põem a culpa dos problemas em imigrantes.

Precisamos de uma forma de nacionalismo melhor, uma visão de patriotismo que confira dignidade aos que foram desrespeitados, que enfatize que somos todos uma só nação e que seja confiante e aberta ao mundo. Estou pensando que temos muito a aprender com Theodore Roosevelt, mas esse é um tema para outro dia.

Tradução de CLARA ALLAIN


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