Folha de S. Paulo


Análise

Para conservadores americanos, Reino Unido virou 'rei da selva'

Preste atenção. Está ouvindo o leão britânico rugir? As pessoas do lado europeu do Atlântico podem ter dificuldade em ouvir, em meio a toda a cacofonia do resultado chocante do plebiscito da quinta-feira (23). Mas o som chegou nítido e forte a algumas partes da América. Para os conservadores, em especial, o Reino Unido virou rei da selva instantaneamente. O Brexit é um evento raro, algo que evocou o mesmo instinto entre partidários e críticos de Donald Trump. O que acontece com Bruxelas não precisa limitar-se a Bruxelas. Pode acontecer com Washington também.

Esse é o efeito demonstrativo britânico. O que dizer da realidade americana? Os paralelos entre a eleição americana próxima e o plebiscito britânico são reais, especialmente se você está do lado previsto para perder. Mais ou menos como a campanha britânica pela saída da UE, os republicanos estão divididos, temendo ser sequestrados por grupos periféricos racistas. As apostas são desfavoráveis, e eles enfrentam um adversário que é do establishment e tem muitos recursos à sua disposição.

Reino Unido vota sobre o Brexit - Veja como foi a votação

Trump parece estar fadado ao fracasso, e muitos outros republicanos em escalões inferiores, também. Apenas tolos apostariam nas chances de uma pessoa como ele chegar à Presidência. Por que colocar tanto em risco apenas por um instante de desabafo emocional?

Depois do Brexit, a resposta não está sendo dada com a mesma confiança. Era natural que Trump interrompesse sua passagem pela Escócia na sexta-feira (24), onde foi para fazer o marketing de seu campo de golfe, para parabenizar os britânicos por terem "tomado seu país de volta". Afinal, é isso o que ele está prometendo aos americanos. Foi um pouco mais bizarro ele ter observado a Escócia "delirando de alegria com o resultado do plebiscito", considerando que quase dois terços dos escoceses se manifestaram contra o Brexit. Mas Donald Trump possui o dom de enxergar coisas que outros não enxergam. Haja visto sua base imaginária de fãs formados por eleitores hispânicos e afro-americanos.

Ele não foi o único, contudo. A projeção dos sonhos conservadores americanos sobre o referendo britânico foi profunda.

John Bolton, que foi funcionário sênior na administração de George W. Bush, falou que "os camponeses britânicos votaram por sair da mansão feudal". Newt Gingrich, ex-presidente republicano da Câmara dos Deputados e candidato a vice-presidente, tuitou que "Churchill e Thatcher teriam orgulho". Ted Cruz, o ex-rival de Trump à candidatura presidencial republicana, saudou o resultado do plebiscito como "um chamado de alerta aos burocratas internacionalistas, de Bruxelas a Washington".´

Seria fácil apontar as falhas nessas leituras equivocadas do que aconteceu. Foi Churchill quem concebeu os "Estados Unidos da Europa", se bem que sem a participação britânica. Foi Margaret Thatcher quem propôs e negociou a ideia radical (e bem-sucedida) de um mercado comum europeu, ao qual parece provável que o Reino Unido agora deixará de ter acesso. Do mesmo modo, alguns eleitores do Brexit podem ter sido induzidos erroneamente a votar pela saída com promessas de que isso liberaria recursos para investir no NHS, o Serviço Nacional de Saúde –algo que provocaria arrepios nos conservadores americanos.

E, contrariamente ao que Cruz deixou entender, o Brexit não representou um golpe crucial em favor da liberdade. O Reino Unido já possuía soberania plena. Tudo o que era preciso para ele sair da UE era que mais da metade dos eleitores manifestasse esse desejo. Em muitos países, qualquer mudança com implicações profundas exigiria uma maioria de dois terços. Nenhum dos Estados dos EUA, incluindo o Texas, Estado de Ted Cruz, poderia separar-se do país sem provocar uma guerra. A única outra opção seria persuadir três quartos dos Estados americanos e dois terços de cada câmara do Congresso a emendar a Constituição. Em outras palavras, isso jamais aconteceria. Em termos legais, o Reino Unido estava pouco mais perto de ser o 28º Estado de uma União Europeia soberana que estava de ser o 51º Estado dos EUA.

União Europeia e Reino Unido

Mas essas nuances não vêm ao caso. O espírito da leitura feita por Donald Trump foi fiel à verdade, mesmo que os detalhes não o tenham sido. E o mesmo se aplica às suas conclusões táticas. O que Trump compreendeu -e Boris Johnson, o líder maior da campanha pelo Brexit, também– foi a psicologia bruta de uma sociedade que está louca para mudar o status quo. Uma vez que você discerniu essa lógica, não é preciso ser gênio para saber o que fazer. Você pode travar uma campanha que praticamente não tenha coerência ou base em fatos. A mesma conclusão se aplica, ao inverso, à campanha britânica pela permanência na UE e à candidatura presidencial de Hillary Clinton. Hillary tem a vantagem de poder enxergar onde David Cameron errou. Se ela quiser evitar o mesmo destino que o primeiro-ministro britânico, precisará entender qual foi o grande erro deste.

Hillary dá poucos sinais de ter entendido isso. A verdade crucial a ser aprendida com o Brexit é que não basta um Projeto Medo (uma campanha baseada em assustar os eleitores, mostrando as prováveis consequências negativas do Brexit). É preciso oferecer aos eleitores algo para endossar que seja mais positivo que o status quo. Assim como a campanha do "permanecer" no Reino Unido, Hillary Clinton representa a continuidade da situação atual. Mesmo seu slogan de campanha, "Mais fortes juntos", ecoa o de David Cameron. A maioria das pessoas pode concordar vagamente com o slogan, mas ele é nebuloso demais para dinamizar os eleitores. Há semelhanças também entre a divisão dos eleitores nos dois países. Como a base que votou pela saída da UE, a base de eleitores de Trump é mais velha, mais branca, mais rural e menos instruída que a média da população. E é mais dinâmica. Como a campanha pela permanência na UE, Hillary Clinton supõe que os eleitores façam uma análise dos custos e benefícios das escolhas que têm pela frente. Alguma espécie de análise desse tipo geralmente é feita, sim, em eleições -até o dia em que não é feita.

Há como sabermos o que acontecerá em 2016 nos Estados Unidos? É claro que não. Pode ser reconfortante pautar-se pela lógica convencional e prever uma vitória tranquila de Hillary Clinton em novembro. Pelas regras da lógica, a derrota de Trump é mais que certa. A alternativa -reformular a campanha de Hillary para apelar para o coração dos eleitores-seria muito mais difícil de fazer. Talvez seja até inalcançável. Os americanos encaram os Clinton com cinismo demais para acreditar que qualquer apelo desse tipo seria autêntico. Mesmo assim, a meu ver Hillary está calculando sua campanha em excesso. Poucas pessoas questionariam o QI dela. É em relação ao âmago dela que as pessoas têm dúvidas. O coração tem razões que a própria razão desconhece.

Tradução de CLARA ALLAIN

Resultado Brexit


Endereço da página:

Links no texto: