Folha de S. Paulo


Mundo passa por uma recessão dos ideais democráticos, diz pesquisador

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O pesquisador sênior do Instituto Brookings Ted Piccone, especialista em ordem global
O pesquisador sênior do Instituto Brookings Ted Piccone, especialista em ordem global

A decisão britânica de deixar a União Europeia é resultado de um paradoxo na política internacional, que está gerando problemas até mesmo para as democracias mais consolidadas.

Segundo o pesquisador sênior do Instituto Brookings Ted Piccone, especialista em ordem global e política internacional, o Brexit é um exemplo do quanto as pessoas estão insatisfeitas com o status quo e buscam tornar o sistema mais democrático e representativo, mas acabam gerando estresse para a própria soberania popular.

Depois de décadas de avanços, o mundo aparenta ter entrado em uma recessão democrática, ele diz, e o sistema de governo pode estar em risco em todo o mundo. Segundo sua avaliação, o período atual ameaça preceitos fundamentais da ordem liberal internacional construída ao longo dos últimos 70 anos.

Em entrevista à Folha, Piccone fala sobre o estado da democracia e sobre como a busca por melhor representatividade pode levar a sistemas políticos mais fechados.

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Folha - Que impacto o senhor acha que o Brexit pode ter para a democracia no mundo?

Ted Piccone - Podemos interpretar os resultados como uma indicação do quão profundos são os problemas em torno da política, mesmo nas democracias mais estabelecidas. O que torna a decisão ainda mais preocupante é que o grande valor da UE era seu caráter de comunidade de países agindo como um grupo em defesa da democracia no mundo.

A decisão faz parte de um movimento global?

Após duas ou três décadas de democratização constante em todo o mundo, estamos diante de uma recessão nesse sistema. As democracias estabelecidas estão passando por uma crise de confiança na sua capacidade de manter o crescimento econômico e se governar com eficácia. A renda média em democracias emergentes está entrando em estagnação ou enfrentando retrocesso.

O Brexit tem sua peculiaridade, mas há uma tendência em todo o mundo. Em muitas democracias, os eleitores estão rejeitando partidos e líderes políticos tradicionais. Vemos isso em países como o Reino Unido, a Espanha, no crescimento de partidos radicais em vários países da Europa e mesmo nas Filipinas, no Brasil, nos Estados Unidos. Os eleitores claramente querem mudanças.

O movimento é novidade?

Isso não devia ser surpresa. Há muitos anos as pesquisas de opinião em todo o mundo mostram que a maioria das pessoas está insatisfeita com os serviços públicos, a economia e o funcionamento da democracia. As pessoas querem que o sistema seja democrático, querem mais abertura, mas estão muito insatisfeitas com a situação existente.

Há uma percepção de que a classe política é corrupta, e de que precisamos nos livrar dela, para começar de novo.

O senhor diz que as pessoas querem um governo mais aberto, mas que essas decisões acabam gerando riscos à democracia.

É um paradoxo. As pessoas querem ter mais voz de decisão, elas querem ter mais controle sobre a política e mais descentralização, mas acabam levando a uma situação em que arriscam a própria democracia.

O processo democrático tradicional passa pela eleição de líderes representantes, que tomam as decisões políticas de forma racional. Ao levar a decisão para os eleitores, abre-se espaço para uma tomada de decisão emocional, que pode não ter o resultado ideal para a população.

Trata-se de uma reação emocional, que vem de um desejo de mudar o sistema, mesmo sem pensar muito bem nas consequências.

Por que isso acontece?

Por causa da frustração com o quão lenta a mudança está sendo. As pessoas preferem acelerar o processo e fazer mudanças abruptas. Elas pensam que, já que o sistema não está interessado em mudar as coisas, é melhor radicalizar e torcer que dê tudo certo.

O problema é que as alternativas aos políticos tradicionais em oferta não são muito atraentes. Mas a insatisfação com a política tradicional é tão grande que os eleitores não votam de acordo com seus interesses, e acabam indo contra o que seria melhor para eles. São casos em que a decisão está sendo guiada apenas pela emoção.

Quais o senhor acha que vão ser as consequências desse processo?

Essa tendência não vai desaparecer facilmente. Ainda teremos muito tumulto político e instabilidade, levando a um bloqueio do sistema e a soluções mais radicais.

As pessoas estão insatisfeitas, e isso leva a uma polarização política cada vez maior. Temos motivos reais para ficar preocupados. Estamos vendo tendências que no passado levaram a radicalismo, como o fascismo e o nacionalismo disfarçado de populismo, que leva a mais conflitos.

O Estado e as pessoas estão reagindo à globalização, ao movimento das pessoas através de fronteiras, de forma perigosa. Estamos enfrentando um momento em que precisamos pensar com calma sobre a democracia e a integração global.

Como impedir isso?

É muito frustrante, pois a tendência leva a uma fragmentação dos eleitores, enquanto as soluções para os problemas políticos do mundo requerem mais moderação e unidade em busca de consenso. Estamos indo na direção oposta, e isso me deixa pessimista em relação ao quanto a democracia vai ser funcional no futuro.

O valor do processo democrático é que o sistema tem o poder de corrigir a si mesmo e de se mover em direção a medidas moderadas.

A ideia de que o vencedor leva tudo e pode fazer o que quiser não funciona por muito tempo. É preciso aceitar derrotas, se manter dentro das regras do jogo e trabalhar pelo consenso.

No caso do Reino Unido, os eleitores decidiram pela saída da União Europeia, e é preciso aceitar a decisão. Com o tempo, vamos ver as consequências da decisão, e os eleitores vão ter que encarar a responsabilidade por suas escolhas. É uma evolução natural.

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RAIO-X

Cargo
Pesquisador-sênior do Instituto Brookings

Formação
Direito na Universidade Columbia e história na Universidade da Pensilvânia

Carreira
Ex-consultor do governo Bill Clinton e ex-diretor do Clube de Madri


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