Folha de S. Paulo


Análise

Contra 'Brexit', valores europeus importam mais que economia

Se você vive na Itália ou Espanha, é fácil defender a União Europeia. Basta apontar para as muitas políticas comuns, citar uma lista pequena de conquistas, e seu argumento estará completo. Sim, o euroceticismo está em alta nesses países. Mas, se eles promovessem um referendo para decidir se permanecem ou não na UE, o resultado não estaria em dúvida. A União Europeia já faz parte de seu DNA político.

Paul Faith - 7.jun.2016/AFP
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Placa contra o 'brexit', a saída do Reino Unido da União Europeia, na Irlanda do Norte

É mais difícil apresentar o argumento pró-Europa no caso do Reino Unido. Mas vou tentar. É mais difícil porque o Reino Unido optou por não participar de todos os elementos mais importantes da UE: o euro; a zona de Schengen, de viagens sem necessidade de apresentar passaporte; a justiça e as questões internas, e os direitos fundamentais. No início do ano, David Cameron conseguiu acrescentar mais alguns elementos quando fechou seu acordo especial com o Conselho Europeu. Seu governo vai poder reduzir os benefícios sociais para cidadãos europeus no país. E o premiê conseguiu isentar o Reino Unido da meta da integração política e de uma "união cada vez mais estreita".

Então o que é que se está pedindo aos eleitores britânicos que decidam nesta quinta-feira? Vista da perspectiva britânica, a União Europeia consiste em uma única área alfandegária e um mercado único. Isso é importante para a City londrina e para grandes empresas industriais. Mas não é importante para todo o mundo. Se o "permanecer na UE" vencer, o Reino Unido vai continuar na esfera externa do círculo interno. Se o "sair da UE" ganhar, o país entrará para a esfera interna do círculo externo.

Há argumentos positivos a ser apresentados em favor do círculo interno. Os diversos países da UE não têm apenas interesses comuns -têm valores compartilhados. Mesmo em seu atual estado devastado, a UE é um veículo mais poderoso para a proteção e projeção global desses valores do que são os governos nacionais.

Quais são esses valores? Seria difícil superar o lema da Revolução Francesa: liberdade, igualdade, fraternidade. Você pode preferir termos diferentes ou pode apresentá-los em ordem distinta.

Eu os explicitaria como segue: liberdade aliada à abertura e tolerância; igualdade de oportunidades, e uma defesa forte do bem público. Este último item pode abranger ideias mais amplas sobre distribuição de renda e proteção social. Diferentes países têm preferências distintas. Mas todos os países da União Europeia têm em comum uma ideia forte de uma esfera pública.

Está claro que "liberdade, igualdade, fraternidade" não é o slogan da China ou do Brasil. Uma das características da globalização financeira tem sido a crescente desigualdade de renda obtida do trabalho. Outra vem sendo o renascimento dos regimes autoritários. Muitos países emergentes evitam o modelo econômico democrático social europeu, dando preferência ao capitalismo transacional, de base financeira, ao estilo dos Estados Unidos.

A maioria dos europeus ainda desfruta de alto grau de proteção social, educação e serviço de saúde gratuitos para os usuários. A UE vem conseguindo conservar a maioria desses serviços, mais ou menos. Mas ela não se tornou um modelo seguido pelo mundo.

As coisas eram diferentes na última década do século 18. A Revolução Francesa tornou-se o momento definidor na história do Ocidente porque o progresso intelectual e econômico da época dependia criticamente de uma mudança de valores. Teria sido impossível levar adiante a revolução industrial no século 19 com o autoritarismo do século 18. Os valores da Revolução Francesa acabaram chegando aos sistemas político e legal de quase todos os países europeus, incluindo o Reino Unido, onde o escritor Thomas Paine articulou o princípio dos direitos inalienáveis. Essas ideias influenciaram muitas reformas políticas, começando no Reino Unido com a Lei da Representação do Povo de 1832. Elas estão na base da carta de direitos fundamentais da União Europeia.

Assim, se você, como é o meu caso, desconfia das afirmações econômicas tremendamente exageradas e implausíveis feitas pela campanha do "permanecer na UE", considere o raciocínio alternativo: nossos valores estão sendo ameaçados por gente como o presidente russo Vladimir Putin, Donald Trump, se ele for eleito presidente dos EUA, e pessoas preconceituosas em toda parte. Estão sendo ameaçados por corporações globais que sonegam impostos e por países que desrespeitam acordos climáticos.

O argumento dos valores não é usado em sentido puramente defensivo. O importante não é apenas a proteção dos valores, mas sua projeção global. A União Europeia tem tido algumas vitórias. Sua política em relação às regiões imediatamente vizinhas está longe de ser perfeita, mas seu soft power tem ajudado a promover transições democráticas e desenvolvimento econômico em muitos países da Europa do leste e central. Quando a Rússia anexou a Crimeia, a UE conseguiu impor sanções, e é provável que as renove. Se -ou melhor, quando-a economia russa desabar, o efeito cumulativo dessas sanções terá desempenhado um papel.

É uma pena que a campanha pela permanência na UE tenha perdido tanto tempo enfocando os benefícios econômicos da participação do Reino Unido na UE. A UE é um construto econômico, é claro. Mas fazer parte da UE não diz respeito fundamentalmente à economia. Diz respeito ao nosso modo de vida.

Tradução de CLARA ALLAIN


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