Folha de S. Paulo


Em feira de armas nos EUA, é possível comprar fuzil mais barato que celular

Manhã de domingo, as famílias vão chegando. Avós com os netos, jovens casais com os filhos pequenos. Escuto um pouco de espanhol (irmãos porto-riquenhos conversam). A maioria é branca, mas se veem também muitos negros. Pelo dia, pelo horário e pelos frequentadores, poderia ser uma missa. Mas é uma feira de armas.

É só um dos dez "gun shows" anuais que acontecem na cidade, Jacksonville, norte da Flórida, 1 milhão de habitantes. Foi em janeiro passado. Viajei até lá para fazer uma reportagem para o "Fantástico" sobre esse tipo de evento tão comum nos EUA, mas estranho aos olhos de um estrangeiro.

Ethan Miller/AFP
Família avalia armas durante o Rocky Mountain Gun Show, evento realizado em Utah em 2012
Família avalia armas durante o Rocky Mountain Gun Show, evento realizado em Utah em 2012

Não é fácil gravar em um "gun show". Os organizadores normalmente negam autorização. Temem que jornalistas estejam a serviço do que eles chamam de "lobby antiarmas". O presidente Obama é seu inimigo mais visível.

Mas, talvez por ser no interior, talvez pelo clima realmente familiar, nossos produtores baseados em Nova York conseguiram um ok para filmarmos lá dentro.

Era um galpão de convenções no centro de Jacksonville - que, como todo centro de cidade caipira americana, é deprimente. Há cemitérios mais animados. No entorno da feira, no entanto, lotação total. Estacionamento cheio.

O ingresso custa U$8 (R$ 28). É permitido entrar armado, mas os seguranças passam um lacre plástico para evitar disparos acidentais. Não há detetor de metais. Os frequentadores apresentam suas armas voluntariamente no guichê de entrada.

Ethan Miller/AFP
Visitante avalia um fuzil durante evento de venda de armas em Las Vegas, em 2011
Visitante avalia um fuzil durante evento de venda de armas em Las Vegas, em 2011

Dentro do salão imenso, o destaque, já no primeiro estande, são as infinitas variações dos fuzis AK-47 e AR-15. Pela lei da Flórida, é só chegar e levar. Não precisa nem tirar porte. Basta uma checagem de antecedentes criminais, feita por meio de uma "hotline" da polícia. Dura no máximo cinco minutos.

Mesmo que o sujeito seja um completo lunático, se tiver ficha limpa, compra o fuzil que quiser. Muitos modelos custam entre U$ 600 (R$ 2.100) e U$ 700 (R$ 2.450). Menos que um celular destravado de última geração.

Para armas menores, como revólveres e pistolas, a história muda. É preciso obter porte e fazer um curso de manuseio de "concealed weapons" (armas que podem ser escondidas). E o revólver ou a pistola só é entregue três dias depois da compra.

O raciocínio por trás da lei é que, se o cliente pretende cometer uma loucura, se vingar, em 72 horas já terá esfriado a cabeça e mudado de ideia. Já no caso dos fuzis, é permitido levar na hora porque, na visão do legislador, quem compra uma arma dessas não pretende usá-la impensadamente.

Ethan Miller/AFP
Visitante avalia um fuzil durante evento de venda de armas em Las Vegas, em 2011
Visitante avalia um fuzil durante evento de venda de armas em Las Vegas, em 2011

Perguntei ao diretor da feira para que alguém precisaria portar um fuzil no dia-a-dia. "Não é questão de precisar", ele disse. "É questão de querer".

Na despedida, ele mostra o cartão de visitas, com uma citação do Evangelho. Em Lucas, 22:36, Jesus diz aos apóstolos: "Mas, agora, quem tem bolsa leve-a consigo. Assim também quem tiver sacola. Quem não tem espada, venda o manto para comprar uma."

Com a Segunda Emenda em uma das mãos, e o Evangelho na outra, os defensores da armas não vão ceder tão cedo.


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