Folha de S. Paulo


Eleição de Duterte nas Filipinas pode atrasar investigações sobre mortes

No dia 14 de maio, cinco dias após os eleitores filipinos terem escolhido o prefeito de Davao, Rodrigo Duterte, como seu próximo presidente, dois atiradores mascarados percorreram de moto a periferia da cidade, procurando sua presa.

Gil Gabrillo, 47, usuário de drogas, voltava de uma briga de galos quando os pistoleiros se aproximaram. Um deles disparou quatro balas no corpo e na cabeça de Gabrillo, matando-o instantaneamente. Em seguida, a moto se afastou.

O crime não chegou a fazer manchetes em Davao, onde a aprovação declarada de Duterte a centenas de assassinatos sumários de bandidos e usuários de drogas ao longo de quase duas décadas ajudou a conduzi-lo à Presidência deste país farto de criminalidade.

Grupos de defesa dos direitos humanos documentaram pelo menos 1.400 homicídios em Davao desde 1998 cometidos, segundo eles, por esquadrões da morte. As vítimas foram, em sua maioria, usuários de drogas, pequenos criminosos e menores de rua.

Em relatório de 2009, a entidade Human Rights Watch identificou uma falha constante da polícia em investigar seriamente esses assassinatos seletivos.

Segundo a organização, policiais aposentados e na ativa trabalham como "controladores" dos pistoleiros dos esquadrões da morte, dando-lhes nomes e fotos de alvos. A polícia de Davao nega.

Mas uma investigação de quatro anos sobre crimes desse tipo feita pelo escritório nacional de investigação, o equivalente ao FBI nas Filipinas, não levou um único policial a ser indiciado.

Um agente sênior desse escritório disse à Reuters que, agora que Duterte está prestes a ser presidente, é provável que a investigação seja arquivada. Na semana passada, o secretário de Justiça filipino disse a repórteres que é possível que a investigação possa não ser levada adiante.

Essa impunidade, somada aos chamados feitos por Duterte nas últimas semanas por mais justiça sumária, pode encorajar os esquadrões da morte em todo o país, dizem grupos da igreja e defensores dos direitos humanos. Já houve uma onda de homicídios não elucidados em cidades vizinhas a Davao, com outros prefeitos ecoando o apoio manifestado por Duterte à justiça sumária.

"Vimos isso acontecer em Davao e vimos imitadores seguindo o mesmo exemplo", falou à Reuters Chito Gascon, presidente da Comissão de Direitos Humanos (CHR), entidade filipina independente. "Agora, imagine como fica ele sendo presidente e o modelo nacional de combate à criminalidade sendo o de Davao?"

Quando a pergunta é feita a Clarita Alia, 62, que vive na favela de Davao onde seus quatro filhos foram assassinados, ela solta uma risada amarga.

"O sangue vai correr como um rio", diz.

Erik De Castro/Reuters
Presidential candidate Rodrigo
Presidente eleito nas Filipinas, Rodrigo Duterte fala à imprensa antes de votar, no início deste mês

DUTERTE NEGA

Duterte foi prefeito e vice-prefeito de Davao pela maior parte dos últimos 30 anos. Ele negou qualquer envolvimento nos assassinatos. "Nunca fiz isso", ele disse em abril, durante sua campanha, respondendo a alegações de que teria comandado os assassinatos.

Mas ele já fechou os olhos a esses crimes ou se manifestou a favor deles, em muitas ocasiões.

Em 2009, em declarações dadas a jornalistas, Duterte avisou: "Se você comete um ato ilegal em minha cidade, se você é bandido ou faz parte de uma quadrilha que vitima os inocentes da cidade, enquanto eu for prefeito você será um alvo legítimo de assassinato".

Mais recentemente, ele prometeu que depois que tomar posse como presidente, em 30 de junho, vai eliminar a criminalidade no país em seis meses, matando os bandidos, traficantes e "filhos da puta".

"Não destruam meu país, porque eu os matarei", disse o ex-promotor público de 71 anos em Davao, em 15 de maio, numa entrevista coletiva à imprensa.

Duterte prometeu restaurar a pena de morte nas Filipinas, avisando que vai enforcar os autores dos crimes mais hediondos duas vezes: uma vez para matá-los e outra "para decepar a cabeça deles por completo, separando-a do corpo".

As pessoas em Davao se recordam da cidade antes de Duterte como sendo um campo de batalha entre as forças de segurança e rebeldes comunistas. O bairro de Agdao era tão violento que recebeu o apelido de "Nicaragdao", numa alusão à nação centro-americana então em guerra.

Hoje, dizem os moradores, graças às campanhas de Duterte contra as drogas e a criminalidade, o clima na cidade é de muito mais segurança. Mas, entre 15 cidades filipinas, Davao ainda é a que tem o maior número de homicídios e o segundo maior número de estupros, segundo a polícia nacional.

DE OLHO EM ASSASSINOS

Entrevistas que a Reuters conduziu com as famílias de quatro vítimas em Davao, uma das quais tinha 15 anos, mostram que os homicídios continuaram enquanto Duterte fazia sua campanha para a Presidência.

Os quatro assassinatos em questão ocorreram nos últimos nove meses e trazem as marcas de um grupo conhecido pelos habitantes da cidade como Esquadrão da Morte de Davao.

As vítimas foram baleadas em plena luz do dia ou no fim da tarde, três delas na mesma rua numa favela à beira do rio. Os assassinos andavam em motos sem placas; usavam máscaras e capacetes que escondiam seus rostos.

Reymar Tecson, 19, foi executado em agosto passado quando dormia ao lado da rua. Uma semana mais tarde, Romel Bantilan, 15, foi morto a tiros quando jogava um jogo de computador a menos de 30 passos dali.

A família de Tecson disse que Reymar era usuário de drogas, mas a de Bantilan insistiu que Romel não consumia drogas.

Romel tinha um irmão gêmeo, e o pai dos dois, Jun Bantilan, disse ter ouvido rumores de que seu outro filho será o próximo a morrer. Jun passa a maior parte de seus dias sentado na extremidade da rua, vigiando para detectar a chegada de assassinos.

Num barraco decrépito ali perto, Norma Helardino ainda não entende por que seu marido Danilo, 53, foi morto a tiros em janeiro. Ele não usava drogas, ela falou, mas "talvez seus amigos, sim".

A polícia registrou um boletim de ocorrência, mas Helardino disse que não viu nenhum sinal de investigação. "Nenhuma testemunha se apresentou." Perguntada sobre quem são os assassinos de seu marido, ela apontou para o teto de zinco de seu barraco e disse: "Só Deus sabe".

A major Milgrace Driz, da polícia de Davao, disse que os três mortos na favela eram "traficantes conhecidos".

"Era o destino deles serem mortos, porque eles optaram pela bandidagem", ela disse. "O prefeito já falou que não há lugar para bandidos na cidade."

Driz disse que Bantilan, de 15, era "reincidente", com "atitude criminosa", e que já tinha sido avisado várias vezes que precisava mudar. Segundo ela, Bantilan entregava drogas para uma quadrilha que provavelmente o matou numa disputa por dinheiro.

A major falou ainda que, como não houve testemunhas, os três assassinatos continuam sem conclusão, apesar dos esforços para investigá-los.

Respondendo às alegações da Human Rights Watch de que a polícia conspira com os esquadrões da morte, Driz disse que a polícia recebe os nomes de criminosos locais através de um disque-denúncia público, mas não os mata.

INQUÉRITO ARQUIVADO

Ativistas dos direitos humanos dizem que as investigações oficiais dos assassinatos cometidos por esquadrões da morte foram dificultadas pela ausência de testemunhas, a apatia burocrática e influência política.

O relatório da organização pediu ao CHR que investigue se Duterte e outros políticos tiveram envolvimento ou cumplicidade nas mortes.

Um relatório do CHR divulgado três anos depois confirmou que o Esquadrão da Morte de Davao estava envolvido "na prática sistemática de assassinatos extrajudiciais". O CHR conseguiu fazer o Escritório do Ombudsman (que investiga denúncias contra autoridades) investigar se Duterte tinha responsabilidade criminal por inatividade diante da evidência de assassinatos em grande número.

Mas, em carta de janeiro de 2016 à qual a Reuters teve acesso, o Ombudsman disse ao CHR que sua investigação tinha sido encerrada e arquivada porque não foram encontradas provas de envolvimento de Duterte ou da polícia nos homicídios. A carta negou a existência do esquadrão da morte, atribuindo-a a "rumores e outras fofocas".

O relatório do CHR levou o "FBI filipino" a abrir uma investigação. Quatro anos mais tarde, essa investigação continua em aberto, segundo representante da agência.

Mas o secretário de Justiça, Emmanuel Caparas, que supervisiona a agência de investigação, disse a jornalistas na sexta-feira (27) que não está claro qual é o status da investigação porque uma testemunha chave, um ex-pistoleiro, tinha saído de custódia protetora. "Agora é questão de haver testemunhas que apareçam para depor", ele disse.

E outra fonte da agência, que pediu anonimato porque não é autorizada a falar com a mídia, disse que agora é provável que a investigação seja suspensa. "Afinal, quem vai investigar o presidente?"

Tradução de Clara Allain


Endereço da página:

Links no texto: