Folha de S. Paulo


Tropas do México são criticadas por alta letalidade no combate às drogas

Na história da guerra moderna, são muitos maiores as chances de combatentes ferirem seus inimigos que matá-los. Mas no México ocorre o contrário.

Segundo números do próprio governo, as Forças Armadas mexicanas são matadoras excepcionalmente eficientes, que acumulam corpos com rapidez fora do comum.

As autoridades mexicanas dizem que os soldados nacionais simplesmente são mais bem treinados e preparados que os cartéis que combatem.

Mas especialistas que estudam o tema dizem que o índice de mortos em combates no México é praticamente inusitado, argumentando que os números revelam uma realidade mais sinistra.

"São execuções sumárias", disse Paul Chevigny, professor aposentado da New York University que foi pioneiro do estudo da letalidade de forças armadas.

De acordo com uma avaliação de guerras desde o final dos anos 1970 feita pela Comitê Internacional da Cruz Vermelha, em muitas formas de combate entre grupos armados, cerca de quatro pessoas ficam feridas para cada pessoa morta. Às vezes a proporção de feridos é ainda mais alta.

No México, porém, a contagem é invertida. O Exército mexicano mata oito inimigos para cada um que deixa ferido.

No caso dos fuzileiros navais de elite mexicanos, a discrepância é ainda mais pronunciada: os dados que disponibilizam revelam que eles matam 30 combatentes para cada um que deixam ferido.

As estatísticas, que o governo deixou de divulgar no início de 2014, proporcionam um vislumbre raro do papel que as forças militares mexicanas assumiram na guerra ao crime organizado.

Nos últimos dez anos, à medida que os soldados e fuzileiros navais mexicanos foram levados às linhas de frente, as violações de direitos humanos se multiplicaram.

Mesmo assim, as Forças Armadas permanecem em grande medida intocadas, protegidas por um governo que reluta em punir a única força que tem condições de encarar o combate.

Pouco tem sido feito para investigar milhares de acusações de tortura, desaparecimentos forçados e execuções extrajudiciais que se multiplicam desde que o ex-presidente Felipe Calderón lançou a guerra do país contra as drogas, uma década atrás.

De 4.000 queixas de tortura recebidas pela Procuradoria Geral desde 2006, apenas 15 resultaram em condenações.

"Não apenas a tortura é generalizada no México, como é cercada de impunidade", disse Juan E. Méndez, o relator especial das Nações Unidas sobre tortura. "Se o governo sabe que a tortura é frequente e mesmo assim os casos não são levados à justiça, e se os que são levados à justiça geralmente não dão em nada, a culpa é do Estado."

As Forças Armadas mexicanas não responderam a pedidos de entrevista. Mas o secretário da Defesa, general Salvador Cienfuegos Zepeda, defendeu publicamente o Exército, dizendo que é a única instituição que está enfrentando o crime organizado —e vencendo.

"Estamos nas ruas porque a sociedade quer que estejamos", disse Cienfuegos este mês ao jornal mexicano "Milenio".

PRESSÃO

Cerca de 3.000 pessoas foram mortas pelos militares entre 2007 e 2012, enquanto 158 soldados morreram. Alguns críticos descrevem as mortes como uma forma de pragmatismo: no México, onde menos de 2% dos casos de homicídio são levados a julgamento, as Forças Armadas matam seus inimigos porque não podem confiar no sistema judiciário capenga.

O governo vem sofrendo ondas de pressão. Em março a Comissão Interamericana de Direitos Humanos condenou a atuação do país na questão dos direitos humanos, incluindo as execuções extrajudiciais. De acordo com relatório anterior das Nações Unidas, a tortura é ampla e irrestrita no país.

O governo diz que leva os direitos humanos a sério, aprovando leis para combater as violações, proteger as vítimas e permitir que militares sejam julgados em tribunais civis. Diz que as Forças Armadas adotaram um novo programa de direitos humanos e nota que, sob o presidente atual, as queixas contra elas diminuíram muito.

"Cada denúncia de uma violação de direitos humanos é preocupante", disse o governo. "Mas esses casos isolados não refletem a situação geral dos direitos humanos no país."

Mas, enquanto as denúncias de tortura por parte das Forças Armadas vêm diminuindo desde 2011, coincidindo com a redução geral do número de militares em ação em todo o país, a letalidade dos confrontos em que elas se envolvem não diminuiu, segundo dados divulgados e que são relativos a até o início de 2014.

A relação singular entre as Forças Armadas e o governo data de mais de 70 anos atrás, ao período depois de o país ter emergido da guerra civil. Para conservar a estabilidade nacional, dizem historiadores, o governista Partido Revolucionário Institucional selou um pacto com as Forças Armadas: em troca de autonomia quase total dos militares, não haveria interferência destes na política.

Diferentemente de muitos países latino-americanos, o México nunca teve um golpe de Estado. E, embora durante muitos anos o governo tenha privado suas Forças Armadas de recursos, elas foram protegidas contra qualquer fiscalização.

Essa proteção passou a ser vital a partir de 2006, quando os soldados foram às ruas para combater os cartéis e a violência cresceu de modo vertiginoso. À medida que as denúncias de abusos alcançavam número recorde, o governo fez muito pouco para cobrar responsabilidade dos militares.

Dois anos atrás, os militares pararam de divulgar suas estatísticas sobre mortes. Sem esses dados, dizem especialistas, é difícil saber o grau de violência atingida pela guerra contra o crime organizado.

CONFRONTO

Alguns incidentes vêm à tona nos tribunais. Foi o caso de um confronto em Tlatlaya, nos arredores da Cidade do México, em junho de 2014, em que o Exército matou 22 pessoas. O Exército se gabou do fato de apenas um soldado ter ficado ferido no confronto.

O caso rapidamente ganhou contornos de escândalo quando a comissão mexicana de direitos humanos determinou que até 15 dos mortos tinham sido executados e que os soldados tinham modificado a cena para fazer parecer que tinha ocorrido uma batalha.

Mesmo assim, os últimos três soldados indiciados foram absolvidos na semana passada, juntando-se a quatro outros inocentados anteriormente. O único soldado condenado pelo caso, pelo crime de desobediência, já cumpriu sua pena.

A impunidade acontece apesar dos vínculos crescentes com as Forças Armadas dos EUA por meio de exercícios militares, treinamento e vendas de equipamentos militares, tendo tudo isso a finalidade de aumentar o profissionalismo das forças armadas mexicanas e, por extensão, melhorar sua atuação em termos de direitos humanos.

Dois anos atrás os Estados Unidos concordaram em vender helicópteros Black Hawk ao México, num pacto que, segundo o Exército americano, pode valer mais de US$1 bilhão ao longo de 25 anos e levar o Exército mexicano para mais perto dos padrões militares americanos.

"Não vendemos apenas helicópteros a eles", falou Todd M. Rosenblum, o ex-funcionário chefe do Pentágono responsável pela política em relação ao México. "Vendemos 15 anos de colaboração estreita que, de outro modo, não teríamos."

Os vínculos mais estreitos não amenizaram as críticas feitas no Congresso.

"Todo o treinamento do mundo não funcionará se não houver pessoas no alto comando que acreditam na importância da transparência e responsabilização", disse o senador democrata Patrick J. Leahy, do Vermont. Ele redigiu uma lei que proíbe os EUA de dar treinamento ou equipamento a tropas estrangeiras que cometem "violações extremas dos direitos humanos", como homicídio ou tortura.

Tradução de CLARA ALLAIN


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