Folha de S. Paulo


Chacinas ignoradas revelam natureza da violência armada nos EUA

Depois da chacina de nove fiéis numa igreja da Carolina do Sul em junho de 2015, mas antes do massacre de oito estudantes e um professor numa faculdade pública do Oregon em outubro, houve um episódio que a polícia de Cincinatti registrou como Incidente 159022597.01.

Aconteceu numa noite de sexta-feira num clube da fraternidade Elks Lodge, em um quarteirão modesto do centro de Cincinnati. Diferentemente dos massacres que o precederam e seguiram, o incidente não mereceu declarações presidenciais nem cobertura abrangente da televisão.

Mas o que aconteceu no endereço 6.101 Prentice Street no dia 21 de agosto talvez revele mais sobre a natureza da violência armada nos Estados Unidos que qualquer dos massacres mais famosos. Foi um exemplo típico de um tipo diferente de violência de massa —um tipo que explode com regularidade tão grande que se torna quase invisível, exceto para suas vítimas, seus sobreviventes e os agressores, todos majoritariamente negros.

Cincinnati Police Department/The New York Times
Foto da polícia de Cincinnati mostra o bar Elks Lodge após tiroteio que matou Barry Washington
Foto da polícia de Cincinnati mostra o bar Elks Lodge após tiroteio que matou Barry Washington

Segundo o relato policial, mais de 30 pessoas estavam reunidas no bar do subsolo do clube para comemorar o 39º aniversário de um homem chamado Greg Wallace, quando um antigo vizinho deste, Timothy Murphy, apareceu no local, embriagado. Uma briga de socos começou. Murphy saiu e voltou novamente, desta vez com um revólver na mão, e abriu fogo.

Enquanto as pessoas presentes corriam para a porta, Murphy correu atrás do irmão mais jovem do aniversariante, Dawaun Wallace, e o perseguiu até o pequeno banheiro, onde lhe deu nove tiros. A violência então transbordou para a rua, onde outro parente de Wallace, também armado, disparou contra Murphy.

No final, 27 tiros tinham sido disparados, atingindo sete pessoas: Murphy, que morreu; Dawaun Wallace, que ficou gravemente ferido; quatro espectadores, um dos quais foi atingido na genitália e outro, na perna.

E Barry Washington.

Washington, 56, trabalhava para a Amazon.com como embalador e, segundo sua irmã, Jaci Washington, tinha dado uma passada no clube a caminho da loja onde ia comprar cigarros. Ele estava no banheiro quando Murphy encurralou Dawaun Wallace ali. Uma única bala penetrou em seu braço e então em seu coração.

Barry Washington deixou um filho, uma filha, um irmão, uma irmã, sua mãe e quatro netos.

"Meu irmão morreu no chão de um banheiro sem motivo algum", disse Jaci Washington. "Ele não tinha nada a ver com a situação toda. Não consigo acreditar que perdi meu irmão desse jeito."

Mas ela disse que muitas pessoas no bairro onde eles cresceram deram de ombros ao saber da morte de Washington. "A verdade é que isso acontece com frequência", falou Jaci. "As pessoas meio que dizem 'ah, tá, mataram esse cara hoje. Amanhã será outra pessoa.'"

CHACINAS

A observação seria mais que correta. O incidente no Elks Lodge foi um dos pelo menos 358 incidentes com armas de fogo ocorridos em todo o país no ano passado —em média quase um por dia— em que quatro ou mais pessoas morreram ou ficaram feridas, incluindo os agressores. O resultado: 462 mortos e 1.330 feridos, às vezes com sequelas vitalícias, na maioria dos casos em saraivadas de tiros que duraram apenas segundos.

Em algumas cidades, a polícia diz que uma parcela crescente dos tiroteios envolve mais de uma vítima, possivelmente devido ao aumento da violência entre gangues de rua. Mas há poucos dados sobre isso.

Procurando ter uma visão melhor do fenômeno, o "The New York Times" identificou e analisou 358 tiroteios que deixaram quatro ou mais mortos ou feridos, utilizando dois bancos de dados criados a partir de relatos na mídia e colaborações de cidadãos e confirmando os detalhes junto às agências policiais.

Apenas alguns poucos foram massacres que ganharam destaque, como os da Carolina do Sul e do Oregon. Os outros formam um retrato do que existe de mais violento no cotidiano americano.

Os casos ilustram a facilidade com que vidas são destruídas quando há uma arma de fogo à disposição —enfiada sob um cinto, no porta-luvas de um carro, em uma caixa de correio ou lata de lixo que funciona como depósito de armas de uma gangue. Os casos documentam o caos semeado por infrações das mais banais possíveis: um empurrão dado em um bar, uma ofensa no Facebook, a escolha errada de música numa festa.

Gus Powell - 15.abr.2016/The New York Times
Elks Lodge, em Cincinnati, onde um tiroteio deixou mortos em agosto do ano passado
Elks Lodge, em Cincinnati, onde um tiroteio deixou mortos em agosto do ano passado

Eles compilam contagens de pessoas que tiveram o azar de estar no lugar errado, no momento errado: um bebê de 11 meses no colo de sua mãe, baleado quando ela se preparava para colocá-lo no carro; um diácono de 77 anos morto por uma bala perdida enquanto assistia à TV no sofá de sua casa.

Os tiros foram disparados em todo tipo de local, mas principalmente ao ar livre: em churrascos, reuniões de família, festivais de música, torneios de basquete, cinemas, pátios de conjuntos habitacionais, festas de 16 anos, parques públicos. Nos casos em que foi possível definir o motivo, mais ou menos a metade envolveu ou sugeriu crimes ou atividades de gangues. A maioria dos outros casos foi decorrente de discussões que saíram de controle, seguidas por atos de violência doméstica.

A vítima típica é um homem de entre 18 e 30 anos, mas mais de uma em cada dez tinham até 17 anos. Sabe-se menos sobre as pessoas que apertaram o gatilho, porque quase 50% dos casos não foram elucidados. Mas a idade média das pessoas presas ou identificadas como suspeitas é de 27 anos.

A maioria dos incidentes ocorreu em bairros economicamente carentes. Esses tiroteios não são, em sua maioria, um fenômeno da classe média.

LINHA RACIAL

A linha divisora também é racial. Entre os casos estudados pelo NYT, houve 39 que envolveram violência doméstica —na maioria desses casos, vítimas e agressores foram brancos. A mesma coisa se deu com muitos dos massacres que ficaram mais conhecidos, incluindo um tiroteio entre gangues de motoqueiros no Texas que deixou nove mortos e 18 feridos.

Ao todo, porém, quase três quartos das vítimas e agressores suspeitos cuja raça pôde ser identificada foram negros. Alguns especialistas sugerem que isso ajuda a explicar por que o número crescente de mortos e feridos não provoca mais indignação.

"Evidentemente, quando a violência é de negros contra negros, ela não recebe a mesma atenção, porque a maioria das pessoas não se identifica com isso. A maioria dos americanos é branca", disse James Alan Fox, professor de criminologia na Northeastern University, em Boston. "As pessoas pensam: 'Esse não é meu mundo. Isso não vai acontecer comigo.'"

Michael Nutter, ex-prefeito de Filadélfia e negro, disse que a sociedade não seria tão condescendente se o índice de brancos mortos por armas de fogo fosse igual ao de negros.

"A visão geral é que um negro do mal matou outro negro do mal", ele disse. "Portanto, é uma pessoa a menos com quem se preocupar."

MAIS DE UMA VÍTIMA

Em Cincinatti, onde o total de 479 mortos e feridos por armas de fogo no ano passado foi o mais alto em nove anos, uma parcela crescente dos incidentes envolve mais de uma vítima. Foi esse o caso de um em cada oito ataques com armas de fogo na primeira metade do ano passado, sendo que no mesmo período de 2010 um em cada 12 incidentes tinha feito mais de uma vítima.

Policiais em algumas outras cidades andam observando uma tendência semelhante, embora outros digam que não. Para eles, as razões do aumento são objeto de especulação.

Em Rochester, Nova York, tiroteios que fizeram vítimas múltiplas foram responsáveis por menos de 15% das vítimas em 2006. Até o momento, neste ano, eles compõem 38%. O chefe de polícia Michael Ciminelli suspeita que as redes sociais estejam tendo um papel nisso, tanto por catalisar disputas pequenas, convertendo-as em enfrentamentos mortais, quanto por atrair mais pessoas para participar delas.

Larry C. Smith é chefe interino de polícia de Durham, Carolina do Sul, e atua na polícia há 28 anos. Ele perguntou: "Será que estamos começando a semear os frutos da era do videogame? Não sei. Mas cinco ou, certamente, dez anos atrás, as coisas não eram assim."

O tiroteio no clube do Elks Lodge foi um dos cinco ocorridos em Cincinatti no ano passado que fizeram pelo menos quatro vítimas. Os outros aconteceram em esquinas, na entrada de uma casa e num churrasco em um estacionamento.

Policiais suspeitam que até metade das 24 vítimas não tenham sido os alvos visados. Agentes comunitários atribuem os incidentes a atiradores autodidatas que, em muitos casos, estão bêbados ou sob o efeito de drogas. "Eles não são atiradores peritos", disse Aaron Pullins, agente comunitário de combate à violência. "Não sabem segurar a arma. Simplesmente atiram."

"FILHOS MATAM FILHOS"

Ali-Rashid Abdullah, 67, é um ex-detento que hoje trabalha para a Comissão de Relações Humanas de Cincinnati, mantendo contato com a comunidade. Ele ou outros agentes comunitários foram aos locais de todos os cinco tiroteios com mais de quatro vítimas ocorridos na cidade no ano passado, conversando com as pessoas do outro lado da fita de isolamento da polícia, procurando acalmar os ânimos para reduzir o potencial de mais violência.

Luke Sharrett - 21.abr.2016/The New York Times
Ali-Rashid Abdullah, 67, ex-detento, hoje trabalha para a Comissão de Relações Humanas de Cincinnati
Ali-Rashid Abdullah, 67, ex-detento, hoje trabalha para a Comissão de Relações Humanas de Cincinnati

Eles se veem como sinais de "pare" colocados diante de rapazes negros com ímpetos autodestrutivos. Também se veem como pessoas que falam a verdade sobre a intersecção entre raça e violência armada, um tema que não é tratado publicamente nem pelo prefeito da cidade, que é branco, nem por seu chefe de polícia, que é negro.

"Os brancos não querem falar disso porque é politicamente incorreto. Os negros não sabem lidar com isso porque são seus filhos que estão apertando o gatilho e também sendo baleados", falou Abdullah, que é negro.

Ninguém se preocupa mais com a violência de negros contra negros que os próprios afro-americanos. Pesquisas revelam que eles têm mais medo que brancos de se tornarem vítimas de crimes e se sentem menos em segurança em seus bairros que os brancos.

A maioria dos pais com quem Abdullah conversa estão desesperados para proteger seus filhos, mas vivem encurralados em bairros perigosos, "apenas tentando sobreviver", segundo ele. E alguns deles negam a realidade, recusando-se a acreditar que seus filhos portem ou usem revólveres, mesmo quando evidências inequívocas lhes são apresentadas.

"'Meu filho, não'", disse Abdullah, adotando a voz de uma mãe de atitude defensiva. "'Os amigos dele, pode ser, mas não meu filho. Eu sei como eu o criei.'"

Ele diz que sua resposta é intransigente: "São nossos filhos que estão aí fora matando nossos filhos, assaltando nossos filhos. A responsabilidade é em primeiro lugar nossa."

Quase 44% dos 300 mil habitantes de Cincinnati são afro-americanos. Mas, no ano passado, 91% das vítimas de disparos foram afro-americanos. Segundo o chefe assistente de polícia, coronel Paul Neudigate, é muito provável que a mesma porcentagem de suspeitos detidos pelos tiroteios também tenha sido feita de afro-americanos.

IMPLOSÃO FAMILIAR

Barry Washington vivia em Madisonville, comunidade racialmente mista de casas pequenas e bem conservadas no nordeste de Cincinnati, onde ele cresceu. Esbelto e bonito, tinha sorriso contagiante e um fraco por chapéus de todo tipo.

Ele ajudava famílias carentes na igreja presbiteriana e levava as compras de supermercado para o apartamento de dois quartos que dividia com sua mãe, Amanda, 77. Estava começando a conhecer um filho de 37 anos de cuja existência só tinha ficado sabendo recentemente.

"Era um bom sujeito", disse sua irmã, Jaci. "Não havia uma mulher que não gostasse dele ou um homem que não quisesse sua companhia."

(Luke Sharrett/The New York Times
Jaci Washington, cujo irmão, Barry, foi morto em um tiroteio no bar Elks Lodge, em Cincinnati
Jaci Washington, cujo irmão Barry foi morto em um tiroteio no bar Elks Lodge, em Cincinnati

Dotado de muitas habilidades, Barry Washington sabia cuidar de jardins, operar uma empilhadeira, consertar uma bola de basquete rasgada. No ano passado, quando os ônibus deixaram de ir até o depósito da Amazon.com no norte de Kentucky, onde ele era embalador, ele teve que passar a fazer serviços avulsos. Mas sua irmã disse que ele estava planejando dividir com outra pessoa um apartamento situado perto do depósito, para que pudesse voltar a trabalhar lá.

Madisonville não é o bairro mais seguro de Cincinnati nem o mais perigoso. Os Washington costumavam evitar encontros com homens armados, mas Barry Washington se precavia até na presença de alunos da nona série. "Cuidado", dizia, segundo sua irmã. "Essa criançada anda ficando doidona."

Um pouco antes das 23h de 21 de agosto, Barry saiu de seu apartamento, dizendo à sobrinha que precisava de cigarros. Sua mãe estava deitada, assistindo a um seriado policial.

Quando Jaci Washington acordou na manhã seguinte, viu uma enxurrada de mensagens de texto sobre um tiroteio. Ligou para sua mãe, que lhe disse que seu irmão não tinha voltado para casa.

Logo depois o telefone de Amanda Washington tocou. Era um detetive, perguntando se ela estava sozinha. "Por que?", ela quis saber. "O que aconteceu com meu filho? Ele morreu?"

Barry Washington tinha dado uma passada no Elks Lodge, que fica a 15 minutos a pé do apartamento que dividia com sua mãe. A festa de aniversário de Greg Wallace estava acontecendo no bar do subsolo. Havia balões amarelos amarrados nas paredes e uma faixa grande dizendo "Feliz Aniversário". Travessas de muffins e pãezinhos estavam dispostas sobre mesas cobertas por toalhas de plástico.

Wallace e seu irmão Dawaun andavam brigando com Timothy Murphy. Os três tinham crescido juntos no bairro e, adultos, tinham sido condenados por tráfico de drogas, como revelam documentos judiciais. A mãe de Murphy, Christine Poindexter, disse que seu filho estava revoltado porque os irmãos Wallace estariam vendendo drogas na casa do pai dele.

A discussão recomeçou quando Murphy apareceu na festa e terminou apenas quando Murphy estava morto e Dawaun Wallace recebera nove tiros. Mais tarde, exames do sangue de Murphy revelaram a presença de quase três vezes o nível legal de álcool e sinais de consumo recente de maconha.

DANO COLATERAL

O homem que matou Murphy não foi processado, segundo o investigador David Gregory porque parece ter disparado em autodefesa. A morte de Barry Washington foi um dano colateral —uma bala perdida cujo alvo pretendido tinha sido Dawaun.

Nove meses mais tarde, a família de Barry Washington ainda está em choque. Sua mãe, que sobreviveu a um câncer, praticamente não sai mais de casa. "Nós o amávamos muito. Ele se foi, com um simples apertão em um gatilho", ela disse. "Não me conformo."

O filho de dez anos de Jaci Washington se fechou e está revoltado. Sua filha de 14 anos tem pesadelos. Jaci diz que seu irmão provavelmente a teria aconselhado a perdoar seu assassino. "Ele vivia me dizendo: 'É preciso procurar o que cada pessoa tem de bom em seu interior'."

No entanto, Jaci não consegue perdoar. Ela procura metáforas para expressar o que a família perdeu. "É como se o mundo tivesse desmoronado. É como se uma bomba nuclear tivesse explodido no meu sofá. É como se alguém tivesse apertado o 'pause' na minha vida. Eu tinha acabado de ver Barry e agora não vou vê-lo nunca mais."

A mãe de Murphy não está procurando perdão. Entrevistada, ela disse que não acredita que seu filho tenha atirado em ninguém, insistindo que a polícia errou na investigação e deixou os verdadeiros culpados escapar. E ela está revoltada com Jaci Washington por descrever seu filho como assassino, em reuniões comunitárias sobre a violência armada.

Jaci Washington e sua mãe deixaram de ir a essas reuniões. Disseram que elas lhes parecem inúteis —apenas mais pessoas arrasadas falando de mais mortes sem sentido.

"Não quero que tenham pena de mim, quero resultados", disse Jaci. "Foi mais um tiroteio de negros em um bairro negro. 'Vamos nos unir.' É tudo fachada. No final, ainda estamos aqui com nossa dor."

Tradução de CLARA ALLAIN


Endereço da página:

Links no texto: