Folha de S. Paulo


Enquanto Obama vai a Hiroshima, Nagasaki pergunta: 'E quanto a nós?'

Adam Dean/The New York Times
Miyako Jodai, 76, sobrevivente do ataque nuclear dos EUA contra Nagasaki, Japão, em 1945
Miyako Jodai, 76, sobrevivente do ataque nuclear dos EUA contra Nagasaki, Japão, em 1945

Quando Miyako Jodai tinha seis anos, os EUA lançaram uma bomba atômica contra sua cidade natal, o porto de Nagasaki.

A explosão a deixou inconsciente, e sua casa foi destruída. Ela passou os dias que se seguiram escondida com dezenas de outras pessoas em uma caverna na montanha.

"Fiquei tão assustada", disse. "Fiquei chorando, e tinha de pisar sobre os corpos de pessoas feridas, porque não havia como passar." Quando ela por fim se arriscou a deixar a caverna, a cidade ainda estava envolta em chamas, labaredas altas.

Jodai foi uma das vítimas mais afortunadas. A bomba lançada sobre Nagasaki na manhã de 9 de agosto de 1945 matou cerca de 74 mil pessoas, cerca da metade do número de mortos causados pela bomba de Hiroshima, três dias antes.

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Turistas visitam a Estátua da Paz no Parque da Paz de Nagasaki Peace Park, construído em 1955
Turistas visitam a Estátua da Paz no Parque da Paz de Nagasaki Peace Park, construído em 1955

Na sexta (27), o presidente Barack Obama se tornará o primeiro presidente norte-americano a visitar Hiroshima no exercício de seu cargo, desde a Segunda Guerra Mundial; Nagasaki não consta de sua agenda.

Embora invocar Hiroshima tenha se tornado código universal para resumir os horrores de uma guerra nuclear, Nagasaki, localizada em Kyushu, uma ilha no sudoeste do Japão, em geral tem vivido à sombra da outra cidade bombardeada.

"Sabemos que a montanha mais alta do Japão é o Monte Fuji", disse Tomihisa Taue, prefeito de Nagasaki, em entrevista em seu escritório. "Mas não sabemos o nome da segunda montanha mais alta."

No entanto, muita gente em Nagasaki reconhece que, de alguma maneira, Hiroshima representa as duas cidades. Essas pessoas dizem que a mensagem que desejam que o mundo receba com a visita de Obama —a de que armas nucleares jamais deveriam voltar a ser usadas— não obriga uma visite dele à cidade.

Taue sugeriu que Nagasaki poderia servir como um poderoso epílogo à abertura da era nuclear que Hiroshima representa. "Gostaria que o presidente dissesse, de Nagasaki para o mundo, que este lugar deveria ser o último do planeta a ter sofrido um bombardeio atômico", afirmou.

REFLEXÃO TARDIA

O fato de Nagasaki ter sido bombardeada em segundo lugar a transformou em uma reflexão tardia na história do debate sobre as armas nucleares, ainda que muitos historiadores afirmem que o ataque foi mais difícil de justificar justamente por ter sido uma repetição.

Ainda que se aceite o raciocínio do presidente Harry Truman, de que bombardear Hiroshima era necessário para forçar a rendição do Japão e encerrar a guerra, o cálculo moral para o segundo bombardeio contra uma população civil, três dias mais tarde, é mais contencioso.

Cerca de 700 mil pessoas ao ano visitam o Museu da Bomba Atômica em Nagasaki, ante cerca de 1,5 milhão de visitantes ao Memorial da Paz de Hiroshima, onde Obama depositará uma coroa de flores na sexta.

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Estudantes visitam o Museu da Bomba Atômica de Nagasaki, Japão
Estudantes visitam o Museu da Bomba Atômica em Nagasaki, Japão

Mesmo no escritório do Conselho dos Sobreviventes da Bomba Atômica em Nagasaki, um adesivo colado a um arquivo ilustra o status secundário da cidade —"Chega de Hiroshimas: As Corridas Armamentistas Precisam Acabar".

Jodai, 76, professora primária aposentada, disse admirar a decisão do presidente norte-americano de visitar Hiroshima e afirmou compreender que sua agenda não permite visitas a ambas as cidades.

Ainda assim, afirma, os sobreviventes de Nagasaki pelo menos gostariam de ser convidados para a cerimônia em Hiroshima. "Sinto como se Nagasaki tivesse sido abandonada e jogada fora", disse.

Enquanto o Japão luta para aceitar sua história de atrocidades da guerra, e políticos e estudiosos locais e norte-americanos continuam a debater o uso da bomba atômica, Nagasaki, de muitas maneiras, oferece uma narrativa mais complexa do que Hiroshima.

Uma das primeiras cidades japonesas a ter contato com comerciantes do Ocidente, entre os quais navegadores portugueses e holandeses, Nagasaki também é o mais antigo e o mais denso polo do catolicismo no Japão.

Quando os aviadores norte-americanos lançaram a bomba, a devastação atingiu a catedral de Urakami, na época a maior do leste asiático. Cerca de 8.000 católicos foram mortos na área.

Para os cristãos de Nagasaki, que sofreram longo ostracismo no Japão por conta de sua fé, foi uma verdade amarga que sua comunidade tenha sido destruída por uma nação predominantemente cristã, em uma missão abençoada por um capelão católico.

A herança católica de Nagasaki, combinada ao papel vistoso de Hiroshima como centro das atividades de combate às armas nucleares, ajudou a gerar um ditado popular no Japão: "Ikari no Hiroshima, inori no Nagasaki", ou "Hiroshima protesta, Nagasaki reza".

Na missa das 6h na manhã de uma segunda-feira, cerca de cem paroquianos estavam acomodados nos longos bancos de madeira da catedral, reconstruída não muito longe de sua localização original.

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Missa matutina na catedral reconstruída de Urakami, que foi destruída no ataque nuclear a Nagasaki
Missa matutina na catedral reconstruída de Urakami, que foi destruída no ataque nuclear a Nagasaki

O padre Ritsuo Hisahi, o titular da paróquia, disse estar menos preocupado com a presença de Nagasaki como símbolo mundial do que com o apelo pela eliminação das armas nucleares.

A arquidiocese de Nagasaki, e as outras 15 arquidioceses japonesas, também se opõem aos esforços do primeiro-ministro Shinzo Abe para reformar a Constituição pacifista imposta ao Japão pelos EUA depois da Segunda Guerra Mundial.

PAPEL DO JAPÃO

Os líderes de Nagasaki também se mostraram francos em sua admissão das ações japonesas na guerra antes que os EUA lançassem as bombas.

Em 1990, Hitoshi Motoshima, então prefeito de Nagasaki, foi ferido a tiros por um nacionalista de direita depois de sugerir que o imperador Hiroito tinha alguma responsabilidade pela Segunda Guerra.

Mais ou menos na mesma época, um vereador da cidade, Masaharu Oka, fundou um museu para celebrar os trabalhadores coreanos convocados para trabalhar em fábricas de Nagasaki durante a guerra, e que foram mortos ou feridos pela bomba atômica.

Abrigado em um antigo restaurante chinês no topo de uma colina íngreme, o museu tem um jeito claramente caseiro.

Além de fotografias dos sobreviventes coreanos e de uma réplica do apertado alojamento em que os coreanos viviam, o museu exibe uma galeria de fotos explícitas sobre o massacre de civis em Nanquim, na China, e as ações da Unidades 731, um centro de pesquisas biológicas e químicas no qual cientistas das Forças Armadas japonesas conduziam pesquisas usando seres humanos como cobaias, também na China.

Toshiaki Shibata, antigo secretário-geral do museu de Masaharu Oka e filho de dois sobreviventes da bomba, disse estar contente por Obama não visitar Nagasaki.

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Catedral reconstruída de Urakami em Nagasaki, um dos maiores e mais antigos redutos católicos do Japão
Catedral reconstruída de Urakami em Nagasaki, um dos maiores redutos católicos do Japão

Shibata, 65, cujo cabelo pintado em um tom rosado lhe confere um ar brincalhão, afirma que a visita de Obama tem por objetivo incentivar os esforços de Abe para mudar a Constituição e atrair o Japão para guerras.

"Seria melhor que ele não viesse aqui", disse Shibata.

Yoshitoki Fukahori, 87, sobrevivente da bomba, disse não entender bem o motivo da agitação pela visita do presidente.

Embora ele a aprove e espere que Obama discurse sobre um mundo livre de armas nucleares, afirmou não ter grandes expectativas. Uma visita a Nagasaki não é necessária, afirmou.

"Minha longa experiência ensina que, quando as pessoas se deixam levar demais pela esperança, logo terminam desapontadas", disse. "Por isso, não confio demais em palavras".

Hiroshima

Ataque a Hiroshima completou 70 anos no ano passado

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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