Folha de S. Paulo


Usado em conflitos e contra protestos, o tanque de guerra completa cem anos

Ele se tornou a arma mais importante da guerra terrestre no último século. Completando agora cem anos da sua invenção em 1916 e seu batismo de fogo na 1ª Guerra Mundial (1914-1918), o tanque de guerra —ou como prefere o Exército brasileiro, "carro de combate"— não tem apenas um valor militar ou tecnológico.

O tanque virou um símbolo do poder do Estado, tanto da sua capacidade de repressão, como, em casos mais raros, da sua capacidade de terminar com a opressão.

O escritor britânico H. G. Wells publicou em 1903 uma história sobre uma guerra futura envolvendo veículos blindados terrestres, "The Land Ironclads" (Os Couraçados Terrestres). Foi uma boa profecia.

O Reino Unido criou em 1915 um comitê para analisar a produção de veículos blindados para lidar com o impasse da guerra de trincheiras. O nome do comitê ecoava Wells: "The Landships Committee" (Comitê dos Navios Terrestres).

Ironicamente, foi a Marinha Real quem demonstrou grande interesse no tema, em parte graças ao seu dinâmico líder, o Primeiro Lorde do Almirantado, Winston Churchill. Ele escreveria depois que para impedir um soldado de levar um tiro, ele tinha que ter uma placa de aço na frente, mas para transportar o peso da placa, ele precisaria de um motor. "Portanto, era o tanque", escreveu.

Dois protótipos foram criados, Little Willie e Big Willie, este último com uma forma romboidal, com as lagartas envolvendo o casco, que seria adotada por todos os tanques britânicos da guerra. Outro apelido do Big Willie era "Mother" —a mãe de todos os tanques.

A primeira encomenda do "Mother" foram cem tanques em fevereiro de 1916. A palavra "tank" não tinha nada a ver com o veículo. Era uma maneira de despistar os alemães; seriam tanques especiais de metal para água para serem enviados aos aliados russos.

O ataque precoce de tanques em setembro der 1916 não foi um sucesso. Havia 60 carros de combate disponíveis, mas apenas 49 estavam rodando. Alguns combates bem sucedidos bastaram para justificar a confiança na nova arma, contudo.

Os tanques não decidiram a guerra, apesar de alguns ataques famosos, como em 1917, quando 476 carros de combate atacaram perto da cidade de Cambrai. Em uma semana houve um "grande" avanço —meros 11 km, mas até então coisa rara na frente ocidental.

Apesar de pequeno, o tanque francês mais importante da 1ª Guerra era revolucionário: o Renault FT-17. Seu design básico permanece até hoje: tem uma torre central com giro de 360 graus. O FT-17 foi o primeiro tanque de muitos exércitos, inclusive o brasileiro, que comprou uma dúzia em 1921. O famoso general americano da 2ª Guerra, George Patton, comandou o FT-17 no primeiro conflito.

Ainda mais ironia: os alemães perderam a guerra e foram proibidos de produzir tanques. Mas logo notaram o potencial desse tipo de veículo. Desenvolveram novas doutrinas para seu emprego e, como não estavam repletos de tanques obsoletos produzidos na guerra, puderam começar do zero introduzindo veículos mais capazes.

2ª GUERRA E GUERRA FRIA

Conjugando tanques, infantaria blindada, artilharia e aviação tática, os alemães varreram da frente seus inimigos nos primeiros anos da 2ª Guerra (1939-1945). Os aliados responderam, criando tanques mais confiáveis —como o americano M-4 Sherman e o soviético T-34— e doutrinas de emprego que também enfatizavam a cooperação com outras armas.

Libertar a Europa da opressão nazista foi o ponto alto da carreira política do tanque no século 20. Depois da guerra, ele rapidamente virou símbolo de repressão durante a Guerra Fria e depois.

Tanques soviéticos avançaram na Hungria em 1956 e na Tchecoslováquia em 1968 para impedir que saíssem da linha básica comunista e não prosseguissem com "liberalizações" do sistema.

Do outro lado do espectro político, tanques foram às ruas de São Paulo, do Rio e cercaram o Congresso durante o golpe de 1964. "Tanques nas ruas" também foi a ordem do dia durante o golpe do general Pinochet no Chile, em 1973.

Duas das melhores imagens simbólicas de tanques vieram da Ásia. É o caso do tanque do Vietnã do Norte detonando o portão e invadindo o palácio presidencial em Saigon, então capital do Vietnã do Sul, em 1975.

A outra é a clássica imagem do provável estudante chinês que fez tanques pararem na praça da Paz Celestial em Pequim, em 1989, quando os protestos foram esmagados pelo governo.

Ou então é o caso do garoto palestino jogando pedra em tanque israelense em 2000, outra imagem que correu o mundo. Ironicamente, tanques israelenses impediram o país de ser varrido do mapa pelos seus inimigos árabes em 1967 e 1973.

"O monstro que veio rastejando da Guerra Fria era de jeito nenhum apenas um instrumento prático de guerra. Ele também veio acompanhado do seu próprio culto mítico —uma vida após a morte miasmática, que elevou a máquina do seu lugar costumeiro nas garagens de quartéis e campos de batalha e a relançou como um fantasma da imaginação moderna", escreveu o historiador cultural britânico Patrick Wright, mais interessado no simbolismo do tanque do que nos seus motores.


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