Folha de S. Paulo


Ativistas defendem fim do termo 'acidente' para colisões nos EUA

As mortes no trânsito estão crescendo em ritmo visto pela última vez 50 anos atrás, como resultado de colisões, trombadas e outros incidentes causados por motoristas.

Mas não chame mais esses episódios de "acidentes".

Essa é a posição de um número crescente de ativistas, entre os quais grupos de base, autoridades federais e líderes locais e estaduais pelos Estados Unidos. Eles estão em campanha para mudar uma mentalidade surgida cem anos atrás, que, segundo eles, trivializa a causa mais comum de incidentes de tráfego: erros humanos.

Eric Feferberg - 25.abr.2016/AFP
Equipes de resgate inspecionam resultado de colisão de veículos em estrada perto de Le Mureaux, na França
Equipes de resgate inspecionam resultado de colisão de veículos em estrada na França

"Quando você usa a palavra 'acidente', é como se dissesse que 'Deus fez com que isso acontecesse", disse Mark Rosekind, diretor da Administração Nacional da Segurança no Tráfego Rodoviário norte-americana, em conferência sobre segurança de motoristas na Escola de Saúde Pública da Universidade Harvard. "Na nossa sociedade, a linguagem pode ser tudo".

Quase todas as colisões resultam de comportamentos como embriaguez, distração e outras atividades de risco. Cerca de 6% são causados por defeitos em veículos, pelo clima e por outros fatores.

As estimativas preliminares do Conselho Nacional de Segurança (National Safety Council), organização sem fins lucrativos, indicam que os incidentes com vítimas fatais nos EUA aumentaram em quase 8% em 2015 em relação ao ano anterior, matando cerca de 38 mil pessoas.

APATIA PERSISTENTE

Rosekind tornou-se parte de um crescente coro de ativistas que dizem que a persistência das colisões —dirigir é a atividade mais perigosa em que a maioria das pessoas participa— pode ser explicada em parte pela apatia persistente quanto à questão.

A mudança semântica tem por objetivo conscientizar as pessoas, especialmente as autoridades, e levá-las a abandonar a atitude implícita de "ninguém é culpado" que a palavra "acidente" acarreta.

Em 1º de janeiro, o Estado de Nevada colocou em vigor uma lei aprovada quase que por unanimidade no Legislativo, para alterar o termo "acidente" para "colisão" em dezenas de casos nos quais a palavra é mencionada nas leis estaduais, como aquelas que cobrem relatórios policiais e de seguros.

A cidade de Nova York em 2014 adotou uma norma para reduzir as vítimas fatais em colisões que dispõe que a cidade "não deve mais encarar trombadas de carros como simples 'acidentes'", e outras cidades, como San Francisco, tomaram medidas semelhantes.

Pelo menos 28 departamentos estaduais de transporte abandonaram o uso do termo "acidente", em referência a incidentes nas estradas, de acordo com Jeff Larason, diretor de segurança rodoviária do Estado de Massachusetts. A administração estadual de segurança do tráfego alterou sua política em 1997, mas recentemente passou a se pronunciar com mais veemência sobre o assunto.

CAMPANHA

Larason, antigo repórter de trânsito na televisão, criou um blog chamado "Abandonem a Palavra A"[cidente] e vem liderando a campanha para convencer grandes veículos de mídia a abandonar o termo. No ano passado, ele buscou apoio para grupos de base que estavam instando a agência de notícias Associated Press a esclarecer aos seus repórteres a maneira pela qual deveriam usar a palavra acidente.

Em abril, a Associated Press anunciou novas normas. Quando há acusações ou provas de negligência em uma trombada, a nova regra dispõe, os repórteres devem "evitar a palavra acidente, que pode ser entendida por alguns como inocentando a pessoa responsável". (O guia de estilo do "The New York Times" não se posiciona sobre a terminologia.)

Mas o uso de "acidente" tem seus defensores, como Larason descobriu em 2014, ao postar suas reflexões sobre o termo em um grupo do Facebook frequentado por repórteres de trânsito.

"Por que um erro humano não pode ser descrito como acidente, ainda que fosse possível prevenir o erro?", escreveu uma pessoa. "O que esse debate resolve? Que injustiça está sendo corrigida?"

Quando Larason sugeriu a funcionários do Departamento do Transporte da Virgínia que eles deixassem de usar "acidente", recebeu um bilhete que afirmava que os motoristas estavam familiarizados com a palavra e se sentiam confortáveis com ela. As autoridades da Virgínia também escreveram que os motoristas poderiam não considerar um incidente menor como "colisão" e que a mudança poderia causar confusão.

Larason rebate que acidente é simplesmente a palavra errada. "Aposto que se trata de uma das palavras de uso comum que é usada de maneira inapropriada com mais frequência".

No Facebook, ele postou uma definição do dicionário Merriam-Webster segundo a qual acidente é um "acontecimento inesperado", que "não se deve a falha ou conduta indevida de parte da pessoa lesada".

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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