Folha de S. Paulo


Irã usa Kim Kardashian para ampliar repressão

A estrela de reality show americana Kim Kardashian pode ser famosa em todo o mundo por suas fotos reveladoras publicadas nas mídias sociais. Mas, para a linha dura iraniana, ela tem uma identidade mais sinistra, como a face de uma conspiração de modelos que ameaça a segurança da República islâmica.

Nesta semana, Mostafa Alizadeh, porta-voz do centro governamental de combate ao cibercrime organizado, alegou que Kardashian tinha colaborado com o Instagram, rede social de fotos, para incentivar as mulheres iranianas a publicar fotos delas próprias violando o código islâmico obrigatório de vestimenta, colocando em risco a moral e os bons costumes.

Segundo ele, o complô foi arquitetado por alguns Estados árabes do golfo Pérsico e pelo Reino Unido, que teriam dado "apoio financeiro sério" para o esforço, cujos alvos seriam mulheres e jovens.

Para rebater a ameaça foi lançada a "Operação Aranha 2". Cerca de 150 salões de beleza e estúdios fotográficos de Teerã foram fechados e 30 modelos, maquiadores e fotógrafos, processados. Oito deles continuam detidos.

O incidente não se limitou a uma divergência em torno de códigos de vestimenta.

Setores da linha dura do regime iraniano -concentrados principalmente na Guarda Revolucionária, no Judiciário e no Parlamento em final de mandato- acreditam que, a despeito do acordo nuclear do ano passado, os EUA querem promover uma mudança de regime em Teerã e que isso seria feito por meio de uma campanha "soft" incentivando os jovens, e em especial as mulheres, a contestar a ideologia da revolução islâmica.

LUTA DE PODER

Reformistas, porém, dizem que a repressão faz parte de uma luta cada vez mais tensa pelo poder, travada entre a linha dura e as forças moderadas próximas ao presidente Hasan Rowhani, que quer se reeleger em 2017.

"A intenção principal é fazer as pessoas se decepcionarem com Rowhani e mostrar que a presidência dele não rendeu nada exceto mais restrições sociais e políticas", diz um analista pró-reformas.

A linha dura sofreu um revés importante nas eleições de março. Os candidatos pró-reforma ao Parlamento e à Assembleia de Especialistas -um conselho que pode determinar o próximo líder supremo, se o aiatolá Ali Khamenei, 76, morrer nos próximos oito anos-tiveram resultados surpreendentemente bons, apesar de a maioria de seus nomes mais destacados terem sido desclassificados pelos órgãos de linha dura.

"A linha dura está furiosa e não sabe o que fazer", diz outro analista reformista. "Hoje ela tem uma meta principal, que é fazer qualquer coisa que seja possível para impedir a reeleição de Rowhani."

O presidente está sob pressão para melhorar a economia e combater a longa recessão e o desemprego juvenil, que chega a 26%. Recentemente a mídia iraniana tem noticiado uma onda de tentativas de suicídio devidas a pressões financeiras.

Os setores mais radicais estão fazendo o máximo para explorar os problemas econômicos, atribuindo-os à política governamental.

Uma das supostas cúmplices de Kardashian, Elham Arab, que publicou fotos dela própria no Instagram usando vestidos de noiva, compareceu a um tribunal, nesta semana, com os longos cabelos escondidos sob um lenço.

Em uma "confissão" transmitida pela TV, ela divulgou o recado dos ultraconservadores. "O Instagram ajudou tremendamente neste desvio moral", disse, acrescentando que decidiu "compartilhar com outras garotas a experiência amarga" vivida.

Outras mulheres também têm sido atingidas pela campanha de linha dura. Mas a repressão não conseguiu convencer os iranianos de que a motivação dos setores de linha dura é religiosa ou mesmo ideológica. Uma professora na capital explicou: "Este é um país onde prostitutas anunciam serviços livremente nas mídias sociais e procuram clientes nas ruas, mas mulheres instruídas e profissionais acabam na cadeia".

Tradução de CLARA ALLAIN


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