Folha de S. Paulo


Cães criados para abate na Coreia do Sul viram pets em outros países

Num sítio envolvido por morros arborizados, a cadela idosa da raça Spitz tem uma vida fácil. Ela segue seu dono, Gong In-young, 55, para todo lugar. E ele adora a cachorra, cujo nome é Branca de Neve.

Mas em seu sítio a sudeste de Seul, Gong também cria cachorros de corte. Os animais passam a vida trancados em jaulas de aço e são alimentados com sobras de comida que Gong recolhe em restaurantes de cidades vizinhas.

A cada ano ele vende 200 ou 300 cães para o matadouro. Falando da vida de Branca de Neve e dos cães criados para o consumo de sua carne, ele admite: "É a diferença entre o céu e o inferno".

Recentemente Gong fez um acordo com a Humane Society International, uma entidade de defesa dos direitos dos animais que lançou uma campanha contra a criação de cães para abate na Coreia do Sul.

A organização está oferecendo incentivos financeiros a criadores —os valores variam entre US$ 2.000 e US$ 60 mil (R$ 7.040 e R$ 210,6 mil), dependendo do número de animais envolvidos.

Em troca, eles entregam seus animais para ser adotados como cães de estimação nos Estados Unidos e outros países e mudam a atividade com que ganham a vida, passando a cultivar pimentas ou mirtilos.

A entidade diz que já fechou cinco criações de cães desde o ano passado. Gong concordou em libertar seus 260 cães semanas apenas antes da data prevista para vários deles morrerem.

É difícil medir o comércio global de carne de cachorro, um setor pouquíssimo regulamentado. Os grupos de defesa dos direitos animais estimam que 30 milhões de cachorros, em sua maioria roubados ou de rua, são mortos anualmente na Ásia, em países como China e Vietnã, para o consumo de sua carne.

A Coreia do Sul produz carne de cachorro em grande escala. A cada ano mais de 17 mil criações de cães, algumas das quais criam mais de mil animais cada, fornecem 2 milhões de cachorros para satisfazer a demanda secular de carne de cachorro no país. Os números são do governo.

JAULAS

Quem visita o complexo de jaulas do sítio de Gong enfrenta uma cacofonia ensurdecedora. Huskies, rottweilers, golden retrievers e cães de outras raças latem sem parar e arranham as grades.

Cães de luta Tosa aposentados ficam deitados, desanimados, alguns com os focinhos feridos. Fezes se acumulam embaixo das jaulas, gerando um fedor fortíssimo.

Comerciantes de cachorros visitam essas criações para comprar animais no início da temporada de consumo de carne do animal, no verão. Um cachorro de 36 quilos está valendo US$ 250 (R$ 880) hoje.

Os cães são transportados em gaiolas tão apertadas que eles mal conseguem se mover, chegando a sufocar antes de chegarem aos matadouros, onde serão eletrocutados.

Atacadistas então levam as carcaças a restaurantes de carne de cachorro, onde os fregueses, muitos deles homens mais velhos, apreciam cumbucas de vegetais condimentados com carne de cachorro desfiada.

"A carne de cachorro é produzida e fornecida como qualquer outro alimento", disse Gong.

O prato feito com carne de cachorro é chamado "bosintang", ou "sopa que faz bem ao corpo". Ele ganhou popularidade numa época de penúria no país, quando a carne era escassa.

Os coreanos têm grande orgulho de sua história culinária. Mesmo os que rejeitam a carne de cachorro muitas vezes repudiam estrangeiros que criticam o hábito. Para eles, consumir escargots é impensável e alimentar patos à força para produzir "foie gras" é uma crueldade.

Mas, à medida que o país foi enriquecendo, os gostos e atitudes dos sul-coreanos em relação aos animais estão mudando. Hoje já é mais comum as pessoas terem animais de estimação.

Há programas de televisão populares sobre a criação de animais de companhia ou o resgate de cães maltratados. Nas eleições parlamentares de abril, um partido pequeno defendeu os direitos dos animais.

Cada vez mais sul-coreanos, especialmente os mais jovens, acham a ideia de comer carne de cachorro repugnante. "Meu avô acaricia meu poodle no colo dele e fala: 'Este está do bom tamanho para uma tigela de bosintang", contou Kim Yoo-na, 14 anos, em Seul.

Recentemente ele foi a uma loja de acessórios para pets com sua mãe. "Ele fala brincando, mas eu arranco meu cachorrinho das mãos dele."

CONSCIÊNCIA

Grupos de defesa dos direitos dos animais esperam que a campanha pela libertação de mais cachorros ajude a conscientizar a população sobre a situação dos animais antes das Olimpíadas de Inverno de 2018, na Coreia do Sul. É um momento em que o país estará mais preocupado com sua imagem internacional.

"Existe muito desconhecimento do público em relação aos cães criados para o abate. O mito de que esses cachorros seriam de alguma maneira diferentes dos 'cães normais' gerou uma indiferença da sociedade em relação ao seu sofrimento", disse Wendy Higgins, porta-voz da Humane Society International.

"O que já vimos nos locais de criação de cães de corte é que todas as raças possíveis se encontram nesses lugares, incluindo os cães de raças puras que são populares como animais de companhia", ela disse.

Gong contou que se mudou para o vale a sudeste de Seul para criar animais com finalidades específicas, como cães de guia para cegos, depois que seu café musical em Seul foi à falência, nos anos 1990.

O excedente de animais e a queda dos preços de cães para finalidades especiais o obrigaram a vender os animais para abate. Dez anos atrás ele começou a criar cães exclusivamente para serem abatidos.

"Não me orgulho de comer carne de cachorro, mas também não acho que devamos nos envergonhar disso", ele falou. "Nenhum país deve ser criticado por sua alimentação."

Para Andrew Plumbly, ativista da Humane Society International, "a cultura não justifica a crueldade". Quando os dois lados se reuniram recentemente, encontraram pontos de convergência.

Gong não vê futuro de longo prazo para sua atividade. Pesquisas revelam que hoje a maioria dos sul-coreanos come frango, carne bovina ou porco em vez de carne canina nos "boknal", os dias em que tradicionalmente consomem comida que acreditam que os ajuda a suportar o calor do verão.

Nenhum dos jovens que Gong conhece, incluindo seu filho, chega perto de carne de cachorro. A imagem das criações de cachorro de corte "não é boa", disse Gong.

Num dia recente Gong se despediu de 17 de seus cachorros, o lote mais recente a ser despachado para os Estados Unidos sob os termos de um acordo fechado com a entidade de proteção aos animais.

Ele disse que se sentiu melhor quando viu fotos dos cachorros vivendo felizes no exterior, como animais de estimação de famílias. Falou que agora talvez experimente cultivar cogumelos.

"Eu não tinha vergonha de como ganhava a vida, mas tampouco me orgulhava disso", ele disse, olhando para os cães que ainda estão enjaulados enquanto são vacinados e aguardam os voos que os levarão para outros países. "Ninguém faria o que eu fazia, se pudesse evitar."

Tradução de CLARA ALLAIN


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